Marxismo: a máquina assassina

Por R. J. Rummel. Versão em português extraída do site do Instituto Mises Brasil. Para ler o artigo original, clique aqui.

Com a queda da União Soviética e dos governos comunistas do Leste Europeu, muitas pessoas passaram a crer que o marxismo, a religião do comunismo, está morto.  Ledo engano.  O marxismo está vivo e vigoroso ainda em muitos países, como Coréia do Norte, Cuba, Vietnã, Laos, em vários países africanos e, principalmente, na mente de muitos líderes políticos da América do Sul.

No entanto, de extrema importância para o futuro da humanidade é o fato de que o comunismo ainda segue poluindo o pensamento e as ideias de uma vasta multidão de acadêmicos e intelectuais do Ocidente.

De todas as religiões, seculares ou não, o marxismo é de longe a mais sangrenta — muito mais sangrenta do que a Inquisição Católica, do que as várias cruzadas e do que a Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes. Na prática, o marxismo foi sinônimo de terrorismo sanguinário, de expurgos seguidos de morte, de campos de prisioneiros e de trabalhos forçados, de deportações, de inanição dantesca, de execuções extrajudiciais, de julgamentos “teatrais”, e de genocídio e assassinatos em massa.

No total, os regimes marxistas assassinaram aproximadamente 110 milhões de pessoas de 1917 a 1987.  Para se ter uma perspectiva deste número de vidas humanas exterminadas, vale observar que todas as guerras domésticas e estrangeiras durante o século XX mataram aproximadamente 35 milhões de pessoas.   Ou seja, quando marxistas controlam estados, o marxismo é mais letal do que todas as guerras do século XX combinadas, inclusive a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e as Guerras da Coréia e do Vietnã.

E o que o marxismo, o maior de todos os experimentos sociais humanos, realizou para seus cidadãos pobres à custa deste sangrento número de vidas humanas? Nada de positivo.  Ele deixou em seu rastro apenas desastres econômicos, ambientais, sociais e culturais.

O Khmer Vermelho — comunistas cambojanos que governaram o Camboja por quatro anos — fornece algumas constatações quanto ao motivo de os marxistas acreditarem ser necessário e moralmente correto massacrar vários de seus semelhantes.  O marxismo deles estava em conjunção com o poder absoluto.  Eles acreditavam, sem nenhuma hesitação, que eles e apenas eles sabiam a verdade; que eles de fato construiriam a plena felicidade humana e o mais completo bem-estar social; e que, para alcançar essa utopia, eles tinham impiedosamente de demolir a velha ordem feudal ou capitalista, bem como a cultura budista, para então reconstruir uma sociedade totalmente comunista.

Nada deveria se interpor a esta realização humanitária.  O governo — o Partido Comunista — estava acima das leis. Todas as outras instituições, normas culturais, tradições e sentimentos eram descartáveis.

Os marxistas viam a construção dessa utopia como uma guerra contra a pobreza, contra a exploração, contra o imperialismo e contra a desigualdade — e, como em uma guerra real, não-combatentes também sofreriam baixas. Haveria um necessariamente alto número de perdas humanas entre os inimigos: o clero, a burguesia, os capitalistas, os “sabotadores”, os intelectuais, os contra-revolucionários, os direitistas, os tiranos, os ricos e os proprietários de terras.  Assim como em uma guerra, milhões poderiam morrer, mas essas mortes seriam justificadas pelos fins, como na derrota de Hitler na Segunda Guerra Mundial.  Para os marxistas no governo, o objetivo de uma utopia comunista era suficiente para justificar todas as mortes.

A ironia é que, na prática, mesmo após décadas de controle total, o marxismo não apenas não melhorou a situação do cidadão comum, como tornou as condições de vida piores do que antes da revolução.  Não é por acaso que as maiores fomes do mundo aconteceram dentro da União Soviética (aproximadamente 5 milhões de mortos entre 1921-23 e 7 milhões de 1932-33, inclusive 2 milhões fora da Ucrânia) e da China (aproximadamente 30 milhões de mortos em 1959-61).  No total, no século XX, quase 55 milhões de pessoas morreram em vários surtos de inanição e epidemias provocadas por marxistas — dentre estas, mais de 10 milhões foram intencionalmente esfaimadas até a morte, e o resto morreu como consequência não-premeditada da coletivização e das políticas agrícolas marxistas.

O que é espantoso é que esse histórico fúnebre do marxismo não envolve milhares ou mesmo centenas de milhares, mas milhões de mortes.  Tal cifra é praticamente incompreensível — é como se a população inteira do Leste Europeu fosse aniquilada.  O fato de que mais 35 milhões de pessoas fugiram de países marxistas como refugiados representa um inquestionável voto contra as pretensões da utopia marxista.  [Tal número equivale a todo mundo fugindo do estado de São Paulo, esvaziando-o de todos os seres humanos.]

Há uma lição supremamente importante para a vida humana e para o bem-estar da humanidade que deve ser aprendida com este horrendo sacrifício oferecido no altar de uma ideologia: ninguém jamais deve usufruir de poderes ilimitados.

Quanto mais poder um governo usufrui para impor as convicções de uma elite ideológica ou religiosa, ou para decretar os caprichos de um ditador, maior a probabilidade de que vidas humanas sejam sacrificadas e que o bem-estar de toda a humanidade seja destruído.  À medida que o poder do governo vai se tornando cada vez mais irrestrito e alcança todos os cantos da sociedade e de sua cultura, maior a probabilidade de que esse poder exterminará seus próprios cidadãos.

À medida que uma elite governante adquire o poder de fazer tudo o que quiser, seja para satisfazer suas próprias vontades pessoais ou, como é o caso dos marxistas de hoje, para implantar aquilo que acredita ser certo e verdadeiro, ela poderá impor seus desejos sem se importar com os custos em vidas humanas.  O poder é a condição necessária para os assassinatos em massa.  Quando uma elite obtém autoridade plena, várias causas e condições poderão se combinar para produzir o genocídio, o terrorismo, os massacres ou quaisquer assassinatos que os membros dessa elite sintam serem necessários.  No entanto, o que tem de estar claro é que é o poder — irrestrito, ilimitado e desenfreado — o verdadeiro assassino.

Nossos acadêmicos e intelectuais marxistas da atualidade usufruem um passe livre.  Eles não devem explicações a ninguém e não são questionados por sua defesa de uma ideologia homicida.  Eles gozam de um certo respeito porque estão continuamente falando sobre melhorar as condições de vida dos pobres e dos trabalhadores, suas pretensões utópicas.  Porém, sempre que adquiriu poder, o marxismo fracassou miserável e horrendamente, assim como o fascismo.  Portanto, em vez de serem tratados com respeito e tolerância, marxistas deveriam ser tratados como indivíduos que desejam criar uma pestilência mortal sobre todos nós.

Da próxima vez que você se deparar com marxistas ou com seus quase equivalentes, os fanáticos esquerdistas, pergunte como eles conseguem justificar o assassinato dos mais de cento e dez milhões de seres humanos que sua fé absolutista provocou, bem como o sofrimento que o marxismo criou para as outras centenas de milhões de pessoas que conseguiram escapar e sobreviver.


NOTA:

R.J. Rummel, professor emérito de ciência política e finalista de Prêmio Nobel da Paz, é o mais aclamado especialista mundial em democídio, termo que ele cunhou para se referir a assassinatos cometidos por governos.  Escreveu o livro Death by Government, leitura obrigatória para qualquer pessoa que queira se inteirar das atrocidades cometidas por governos.  Ao todo, Rummel já publicou 29 livros e recebeu numerosas condecorações por sua pesquisa.


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Capitalismo e Cristianismo

por Olavo de Carvalho. Artigo publicado originalmente na revista República – edição de dezembro de 1998 – e reproduzido no site do autor. Para ler o artigo original, clique aqui.

Uma tolice notável que circula de boca em boca contra os males do capitalismo é a identificação do capitalista moderno com o usurário medieval, que enriquecia com o empobrecimento alheio.

Lugar-comum da retórica socialista, essa ideiazinha foi no entanto criação autêntica daquela entidade que, para o guru supremo Antonio Gramsci, era a inimiga número um da revolução proletária: a Igreja Católica.

Desde o século XVIII, e com freqüência obsessivamente crescente ao longo do século XIX, isto é, em plena Revolução Industrial, os papas não cessam de verberar o liberalismo econômico como um regime fundado no egoísmo de poucos que ganham com a miséria de muitos.

Mas que os ricos se tornem mais ricos à custa de empobrecer os pobres é coisa que só é possível no quadro de uma economia estática, onde uma quantidade mais ou menos fixa de bens e serviços tem de ser dividida como um bolo de aniversário que, uma vez saído do forno, não cresce mais. Numa tribo de índios pescadores do Alto Xingu, a “concentração do capital” eqüivaleria a um índio tomar para si a maior parte dos peixes, seja na intenção de consumi-los, seja na de emprestá-los a juros, um peixe em troca de dois ou três. Nessas condições, quanto menos peixes sobrassem para os outros cidadãos da taba, mais estes pobres infelizes ficariam devendo ao maldito capitalista índio — o homem de tanga que deixa os outros na tanga.

Foi com base numa analogia desse tipo que no século XIII Sto. Tomás, com razão, condenou os juros como uma tentativa de ganhar algo em troca de coisa nenhuma. Numa economia estática como a ordem feudal, ou mais ainda na sociedade escravista do tempo de Aristóteles, o dinheiro, de fato, não funciona como força produtiva, mas apenas como um atestado de direito a uma certa quantidade genérica de bens que, se vão para o bolso de um, saem do bolso de outro. Aí a concentração de dinheiro nas mãos do usurário só serve mesmo para lhe dar meios cada vez mais eficazes de sacanear o próximo.

Mas pelo menos do século XVIII em diante, e sobretudo no XIX, o mundo europeu já vivia numa economia em desenvolvimento acelerado, onde a função do dinheiro tinha mudado radicalmente sem que algum papa desse o menor sinal de percebê-lo. No novo quadro, ninguém podia acumular dinheiro embaixo da cama para acariciá-lo de madrugada entre delíquios de perversão fetichista, mas tinha de apostá-lo rapidamente no crescimento geral da economia antes que a inflação o transformasse em pó. Se cometesse a asneira de investi-lo no empobrecimento de quem quer que fosse, estaria investindo na sua própria falência.

Sto. Tomás, sempre maravilhosamente sensato, havia distinguido entre o investimento e o empréstimo, dizendo que o lucro só era lícito no primeiro caso, porque implicava participação no negócio, com risco de perda, enquanto o emprestador, que se limitava sentar-se e esperar com segurança, só deveria ter o direito à restituição da quantia emprestada, nem um tostão a mais. Na economia do século XIII, isso era o óbvio — aquele tipo de coisa que todo mundo enxerga depois que um sábio mostrou que ela existe. Mas, no quadro da economia capitalista, mesmo o puro empréstimo sem risco aparente já não funcionava como antes — só que nem mesmo os banqueiros, que viviam essa mudança no seu dia a dia e aliás viviam dela, foram capazes de explicar ao mundo em que é que ela consistia. Eles notavam, na prática, que os empréstimos a juros eram úteis e imprescindíveis ao desenvolvimento da economia, que portanto deviam ser alguma coisa de bom. Mas, não sabendo formular teoricamente a diferença entre essa prática e a do usurário medieval, só podiam enxergar-se a si próprios como usurários, condenados portanto pela moral católica. A incapacidade de conciliar o bem moral e a utilidade prática tornou-se aí o vício profissional do capitalista, contaminando de dualismo toda a ideologia liberal (até hoje todo argumento em favor do capitalismo soa como a admoestação do adulto realista e frio contra o idealismo quixotesco da juventude). Karl Marx procurou explicar o dualismo liberal pelo fato de que o capitalista ficava no escritório, entre números e abstrações, longe das máquinas e da matéria — como se fazer força física ajudasse a solucionar uma contradição lógica, e aliás como se o próprio Karl Marx houvesse um dia carregado algum instrumento de trabalho mais pesado que uma caneta ou um charuto. Mais recentemente, o nosso Roberto Mangabeira Unger, o esquerdista mais inteligente do planeta, e que só não é plenamente inteligente porque continua esquerdista, fez uma crítica arrasadora da ideologia liberal com base na análise do dualismo ético (e cognitivo, como se vê em Kant) que é a raiz da esquizofrenia contemporânea.

Mas esse dualismo não era nada de inerente ao capitalismo enquanto tal, e sim o resultado do conflito entre as exigências da nova economia e uma regra moral cristã criada para uma economia que já não existia mais. O único sujeito que entendeu e teorizou o que estava acontecendo foi um cidadão sem qualquer autoridade religiosa ou prestígio na Igreja: o economista austríaco Eugen Böhm-Bawerk. Este gênio mal reconhecido notou que, no quadro do capitalismo em crescimento, a remuneração dos empréstimos não era apenas uma conveniência prática amoral, mas uma exigência moral legítima. Ao emprestar, o banqueiro simplesmente trocava dinheiro efetivo, equivalente a uma quota calculável de bens na data do empréstimo, por um dinheiro futuro que, numa economia em mudança, podia valer mais ou valer menos na data da restituição. Do ponto de vista funcional, já não existia mais, portanto, diferença positiva entre o empréstimo e o investimento de risco. Daí que a remuneração fosse tão justa no primeiro caso como o era no segundo. Tanto mais justa na medida mesma em que o liberalismo político, banindo a velha penalidade da prisão por dívidas, deixava o banqueiro sem a máxima ferramenta de extorsão dos antigos usurários.

Um discípulo de Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, explicou mais detalhadamente essa diferença pela intervenção do fator tempo na relação econômica: o emprestador troca dinheiro atual por dinheiro potencial, e pode fazê-lo justamente porque, tendo concentrado capital, está capacitado a adiar o gasto desse dinheiro, que o prestamista por seu lado necessita gastar imediatamente para tocar em frente o seu negócio ou sua vida pessoal. Von Mises foi talvez o economista mais filosófico que já existiu, mas, ainda um pouco embromado por uns resíduos kantianos, nem por um instante pareceu se dar conta de que estava raciocinando em termos rigorosamente aristotélico-escolásticos: o direito à remuneração provém de que o banqueiro não troca simplesmente uma riqueza por outra, mas troca riqueza em ato por riqueza em potência, o que seria rematada loucura se o sistema bancário, no seu conjunto, não estivesse apostando no crescimento geral da economia e sim apenas no enriquecimento da classe dos banqueiros. A concentração do capital para financiar operações bancárias não é portanto um malefício que só pode produzir algo de bom se for submetido a “finalidades sociais” externas (e em nome delas policiado), mas é, em si e por si, finalidade socialmente útil e moralmente legítima. Sto. Tomás, se lesse esse argumento, não teria o que objetar e certamente veria nele um bom motivo para a reintegração plena e sem reservas do capitalismo moderno na moral católica. Mas Sto. Tomás já estava no céu e, no Vaticano terrestre, ninguém deu sinal de ter lido Böhm-Bawerk ou Von Mises até hoje. Daí a contradição grosseira das doutrinas sociais da Igreja, que, celebrando da boca para fora a livre iniciativa em matéria econômica, continuam a condenar o capitalismo liberal como um regime baseado no individualismo egoísta, e terminam por favorecer o socialismo, que agradece essa colaboração instituindo, tão logo chega ao poder, a perseguição e a matança sistemática de cristãos, isto é, aquilo que o Dr. Leonardo Boff, referido-se particularmente a Cuba, denominou “o Reino de Deus na Terra”. Daí, também, que o capitalista financeiro (e mesmo, por contaminação, o industrial), se ainda tinha algo de cristão, continuasse a padecer de uma falsa consciência culpada da qual só podia encontrar alívio mediante a adesão à artificiosa ideologia protestante da “ascese mundana” (juntar dinheiro para ir para o céu), que ninguém pode levar a sério literalmente, ou mediante o expediente ainda mais postiço de fazer majestosas doações em dinheiro aos demagogos socialistas, que, embora sejam ateus ou no máximo deístas, sabem se utilizar eficazmente da moral católica como instrumento de chantagem psicológica, e ainda são ajudados nisto — porca miséria! — pela letra e pelo espírito de várias encíclicas papais.

Uma das causas que produziram o trágico erro católico na avaliação do capitalismo do século XIX foi o trauma da Revolução Francesa, que, roubando e vendendo a preço vil os bens da Igreja, enriqueceu do dia para a noite milhares de arrivistas infames e vorazes, que instauraram o império da amoralidade cínica, o capitalismo selvagem tão bem descrito na obra de Honoré de Balzac. Que isso tenha se passado logo na França, “filha dileta da Igreja”, marcou profundamente a visão católica do capitalismo moderno como sinônimo de egoísmo anticristão. Mas seria o saque revolucionário o procedimento capitalista por excelência? Se o fosse, a França teria evoluído para o liberal-capitalismo e não para o regime de intervencionismo estatal paralisante que a deixou para sempre atrás da Inglaterra e dos Estados Unidos na corrida para a modernidade. Um governo autoritário que mete a pata sobre as propriedades de seus adversários para distribuí-las a seus apaniguados, é tudo, menos liberal-capitalista: é, já, o progressismo intervencionista, no qual, por suprema ironia, a Igreja busca ainda hoje enxergar um remédio contra os supostos males do liberal-capitalismo, que por seu lado, onde veio a existir — Inglaterra e Estados Unidos —, nunca fez mal algum a ela e somente a ajudou, inclusive na hora negra da perseguição e do martírio que ela sofreu nas mãos dos comunistas e de outros progressistas estatizantes, como os revolucionários do México que inauguraram nas Américas a temporada de caça aos padres. O caso francês, se algo prova, é que o “capitalismo selvagem” floresce à sombra do intervencionismo estatal, e não do regime liberal (coisa aliás arquiprovada, de novo, pelo cartorialismo brasileiro). Insistindo em dizer o contrário, movida pela aplicação extemporânea de um princípio tomista e vendo no estatismo francês o liberal-capitalismo que era o seu inverso, a Igreja fez como essas mocinhas de filmes de suspense, que, fugindo do bandido, pedem carona a um caminhão… dirigido pelo próprio. A incapacidade de discernir amigos e inimigos, o desespero que leva o pecador a buscar o auxílio espiritual de Satanás, são marcas inconfundíveis de burrice moral, intolerável na instituição que o próprio Cristo designou Mãe e Mestra da humanidade. Errare humanum est, perseverare diabolicum: a obstinação da Igreja em suas reservas contra o liberal-capitalismo e em sua conseqüente cumplicidade com o socialismo é talvez o caso mais prolongado de cegueira coletiva já notado ao longo de toda a História humana. E quando em pleno século XIX o papa já assediado de contestações dentro da Igreja mesma proclama sua própria infalibilidade em matéria de moral e doutrina, isto não deixa de ser talvez uma compensação psicológica inconsciente para a sua renitente falibilidade em matéria econômica e política. Daí até o “pacto de Metz”, em que a Igreja se ajoelhou aos pés do comunismo sem nada lhe exigir em troca, foi apenas um passo. Ao confessar que, com o último Concílio, “a fumaça de Satanás entrara pelas janelas do Vaticano”, o papa Paulo VI esqueceu de observar que isso só podia ter acontecido porque alguém, de dentro, deixara as janelas abertas.

Que uma falsa dúvida moral paralise e escandalize as consciências, introduzindo nelas a contradição aparentemente insolúvel entre a utilidade prática e o bem moral, e, no meio da desorientação resultante, acabe por levar enfim a própria Igreja a tornar-se cúmplice do mais assassino e anticristão dos regimes já inventados —eis aí uma prestidigitação tão inconfundivelmente diabólica, que é de espantar que ninguém, na Igreja, tenha percebido a urgência de resolver essa contradição no interior mesmo da sua equação lógica, como o fizeram Böhm-Bawerk e von Mises (cientistas alheios a toda preocupação religiosa). Mais espantoso ainda é que em vez disso todos os intelectuais católicos, papas inclusive, tenham se contentado com arranjos exteriores meramente verbais, que acabaram por deixar no ar uma sugestão satânica de que o socialismo, mesmo construído à custa do massacre de dezenas de milhões de cristãos, é no fundo mais cristão que o capitalismo.

Não há alma cristã que possa resistir a um paradoxo desse tamanho sem ter sua fé abalada. Ele foi e é a maior causa de apostasias, o maior escândalo e pedra de tropeço já colocado no caminho da salvação ao longo de toda a história da Igreja.

Arrancar da nossa alma essa sugestão hipnótica, restaurar a consciência de que o capitalismo, com todos os seus inconvenientes e fora de toda intervenção estatal pretensamente corretiva, é em si e por essência mais cristão que o mais lindinho dos socialismos, eis o dever número um dos intelectuais liberais que não queiram colaborar com o farsesco monopólio esquerdista da moralidade, trocando sua alma pelo prato de lentilhas da eficiência amoral.


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A Conquista do Brasil (Parte VI)

Demorou mas saiu a parte quatro desta série! Hoje vamos tratar de alguns aspectos dos conflitos que se desenvolveram ao longo da conquista do território por parte dos portugueses e luso-brasileiros.

I. Os campos de batalha
A guerra se desenvolve em diferentes tipos de terreno. Tradicionalmente, a guerra ocorre em terra e, com o desenvolvimento da marinha de guerra, na água. Com a invenção dos primeiros balões e aviões, a aeronáutica entra em cena. Em última instância, a guerra também pode ser eletrônica ou informática. Adaptando nossa análise para o contexto da América portuguesa, temos o seguinte:

Terra
Em terra, era de vital importância manter a segurança dos fortes, das vilas e suas roças, das feitorias e postos comerciais, do lado dos colonizadores. Para os nativos, era importante assegurar o território de caça, pesca e coleta, além da aldeia propriamente dita. Os índios tupinambás, por exemplo, entravam em conflito com os portugueses e tupiniquins sobretudo em novembro e agosto, períodos de coleta do abati (milho) e pesca do pirati (tainha). Ao menos uma vez no ano, os jê do interior avançavam para a costa em busca de caju, o que resultava nas guerras do caju. Territórios habitados por guarás, aves de plumas vermelhas usadas para a confecção de indumentárias, eram importantes para o comércio indígena bem como áreas de colheita do algodão.

Além de serem mais numerosos, os nativos viviam de extrativismo e por isso precisavam de áreas de coleta e caça. Disto resulta que a área a ser defendida pelos nativos era muito maior do que aquela de que dependiam os colonizadores: durante muito tempo, a ocupação européia do território brasileiro ficou restrita à costa e este espaço era suficiente para manter a população colonial.

Não haviam Estados formados no Brasil antes da colonização: os europeus e os nativos referiam-se a territórios usando nomes de montanhas, rios ou tribos identificáveis com a região. Exemplos de topônimos tupi-guarani são Araçatuba (terra dos araçás, um tipo de fruto), Iguaçu (rio grande), Guanabara (baía grande) e Ipiranga (rio vermelho). A terra dos mundurucus foi batizada, ao estilo europeu, de Mundurucânia. São facilmente identificáveis demarcações territoriais criadas pelos colonizadores, como as capitanias e sesmarias, as colônias francesas (França Antártica e França Equinocial) e a região de ocupação holandesa (Nova Holanda), bem como a região costeira do Brasil dominada pelos tupis e guaranis, denominada Pindorama.

Na terra, destaca-se um tipo de guerra: expedição de apresamento e guerra de vendeta, realizadas primeiramente entre os índios e depois pelos bandeirantes (em expedições punitivas), e o cerco às vilas fundadas por colonos.

Tropas terrestres
As forças portuguesas eram compostas de colonos armados com bestas (abandonadas em algum ponto entre a segunda metade do século XVI e o início do século XVII), arcabuzes e mosquetes, além da tradicional espada rapieira. Armas de haste como piques e lanças eram raras. Peças de artilharia eram empregadas na defesa de fortificações.

Não havia na época distinção bem marcada entre civis e militares, embora houvesse uma hierarquia, representada pelo capitão. Antes da criação de exércitos nacionais na Europa, o capitão era um nobre responsável pela propriedade, pagamento e comando de uma companhia de militares. O capitão da companhia colocava-a ao serviço do seu senhor feudal ou monarca, em troca de um pagamento.

A cavalaria organizada só viria a surgir com a organização do Regimento de Dragões Auxiliares em Pernambuco, após a guerra contra os holandeses.

Entre os nativos também não havia distinção entre civil e militar.  O armamento típico era o arco e a borduna. Mulheres auxiliavam na logística, como explicado anteriormente, mas há relatos de mulheres guerreiras também. Não haviam rankings militares, sendo a distinção entre os guerreiros feita mais pela glória pessoal do que por uma hierarquia oficial: os índios tupis que sacrificavam mais inimigos no ritual antropofágico adquiriam mais “nomes”, mais esposas e podiam usar mais adereços.

Atribui-se a chegada dos cavalos à região do Prata a dom Pedro de Mendoza, quando fundou pela primeira vez Buenos Aires em 1535, e a Alvar Nuñez Cabeza de Vaca quando trasladou cavalos do Peru para Asunción em 1541. A presença de manadas de cavalo vagando em liberdade na região é atribuída à queda de Buenos Aires, momento em que os cavalos teriam fugido. É difícil estabelecer quando os nativos passaram a usar o cavalo, mas temos um exemplo extremo que mostra o quão bem ele foi utilizado: na segunda metade do século XVIII, calcula-se que os guaicurus tinham cerca de 8 mil cavalos. Ficaram conhecidos como imponentes cavaleiros.

Água
Naturalmente, era importante também a soberania sobre os recursos hídricos, as rotas fluviais e as áreas costeiras. Isto valia tanto para colonizadores quanto para nativos, já que o transporte fluvial era essencial para o comércio de ambos, bem como as áreas de pesca e fontes naturais. No caso dos colonizadores portugueses, era de fundamental importância combater o tráfico realizado por outros europeus (ingleses e franceses) em terras brasileiras. Era comum o enfrentamento com corsários e piratas franceses, por exemplo.

O oceano
Para defender a costa, os colonizadores construíam fortes equipados com muralhas e canhões. Estes tinham por objetivo guardar os portos contra ataques de navios inimigos europeus. Para a defesa da costa, empregavam-se as embarcações à disposição, como o bergantim. Eram armadas com sete peças de artilharia (um falcão e seis berços), de acordo com a ordenança do “Alardo de 1525”. Até que ponto esta padronização era seguida no Brasil, não se sabe ao certo.

Os rios
Nos rios, a embarcação mais utilizada pelos colonizadores portugueses também era o bergantim, embarcação a remos leve, rápida, manobrável e pequena o suficiente para navegar nos principais cursos d’água. Foi muito empregada no combate à pirataria, justamente pela sua manobrabilidade e velocidade. Sua guarnição máxima era de 90 pessoas.

Da parte dos nativos, a única embarcação por eles conhecida era a canoa, que usavam para transporte, comércio e mobilização militar. Há relatos de canoas capazes de transportar até 60 pessoas. Podiam ser facilmente trazidas para a terra, o que aumentava em muito a mobilidade, e relata-se que a sua velocidade era imbatível para as pesadas embarcações europeias.

O uso de “frotas” de numerosas canoas para realizar assaltos às vilas e aldeias rivais era bastante comum. Em sua Carta sobre a fundação de Rio de Janeiro, o missionário José de Anchieta relata um assalto dos tamoios que compreendia mais de oitenta canoas.

Alma
Mais importante do que dominar uma porção de terra e suas hidrovias era manter a população nativa pacificada e aliada aos esforços colonizadores. Seria simplesmente impossível colonizar qualquer porção do continente americano sem estabelecer relações estáveis com os nativos. Um dos instrumentos mais importantes para o estabelecimento destas relações era a conversão dos nativos à fé dos colonizadores.

Católicos
Os primeiros missionários que vieram com Cabral eram franciscanos. Até 1549 os franciscanos foram os únicos missionários no Brasil. A Ordem Franciscana se estabeleceu definitivamente no Brasil somente em 1585.

Em 1549 chegaram à Bahia os seis primeiros Jesuítas, na expedição de Tomé de Souza, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega. Atendiam também fora da Bahia, nas Capitanias próximas.

Outros grupos católicos também enviaram missionários para o Brasil: em 1580 chegaram os Beneditinos e em 1584, os Carmelitas.

Protestantes
Os primeiros protestantes no Brasil foram os calvinistas franceses, que chegaram em uma expedição comandada pelo vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon à Baía da Guanabara em 1555.

Villegaignon entrou em atrito com os calvinistas sobre questões teológicas, reproduzindo nos trópicos o que acontecia na Europa. O pastor Chartier foi enviado à França em busca de instruções e os colonos protestantes foram expulsos da pequena ilha em que a colônia estava instalada (Ilha de Villegaignon). A expulsão colocou os calvinistas em contato direto com os tupinambás, sendo esse evento o primeiro contato missionário protestante com um povo não-europeu.

Em 1630, quando os holandeses conquistam Pernambuco, o calvinismo tem sua vida estendida no Brasil (em 14 capitanias do nordeste) por mais 24 anos, pelo menos até o fim da ocupação em 1654. Com a chegada de Maurício de Nassau, implantam a estrutura religiosa calvinista. Até 1654 foram organizadas 24 igrejas e congregações. A experiência terminou com a derrota holandesa.

Nativos
Os pajés estavam relacionados com os movimentos intra e extratribais das populações nativas. Durante as numerosas migrações tupis-guaranis nos tempos pré-cabralinos, a religião garantiram a dispersão com homogeneidade cultural. Eram mediadores na solução dos problemas intra e extratribais, nos quais a cura das doenças era apenas um dos itens.

Entre os Guarani existiam os caraí, que eram bem mais que pajés. Viviam afastados das aldeias e isolados: não pertenciam a uma comunidade específica. Em certos momentos se dirigiam às aldeias para realizarem longos discursos. Transitavam por qualquer aldeia, inclusive as inimigas de seu grupo de origem. Em muitos casos, eram vistos como heróis reencarnados, homens-deuses ou profetas. Só eles seriam capazes de mobilizar um grupo a sair de suas comunidades, largar para trás suas roças, toda a vida social e partir em busca da “Terra sem Mal”. Por sua vida isolada, eram exteriores à aliança política e aos vínculos de parentesco, o que explica porque eram impedimento aos esforços colonizadores: eles ficavam alheios às alianças firmadas entre europeus e chefes militares indígenas, tanto quanto ficavam alheios ao ‘cunhadismo’.

No século XVI, a atividade dos Caraís ainda não era profética. Porém, muitas vezes sob sua liderança se organizou a resistência à colonização. Algumas das guerras contra os espanhóis foram provocadas e dirigidas por profetas: eles tentaram aproveitar a situação criada pela presença dos estrangeiros para garantir seu poder.

II. Alianças
Os índios reagiram de formas distintas à presença dos europeus, mantendo relações pacíficas como o comércio e a aliança militar e conflituosas como a guerra e a revolta. Para os nativos, índios de uma nação rival ou desconhecida eram tão estrangeiros quanto um português ou francês, e por isto é compreensível que tenham se aliado a europeus no combate a outros americanos.

O apoio indígena foi crucial para a vitória da colonização portuguesa. Com este apoio, contudo, as lideranças indígenas tinham seus próprios objetivos: lutar contra seus inimigos tradicionais, que também se aliavam aos inimigos dos portugueses por idênticas razões.

Alguns exemplos das alianças:

  • Temiminós liderados por Araribóia se aliaram aos portugueses na baía da Guanabara para derrotar os franceses, que por sua vez recebiam apoio dos Tamoios.
  • O chefe tupiniquim Tibiriçá, valioso para o avanço português na região de São Vicente e no planalto de Piratininga, combatia rivais tupis e os “tapuias” Guaianá, além de escravizar os Carijós para os portugueses.
  • O chefe potiguar Zorobabé, na Paraíba e Rio Grande do Norte, aliou-se aos franceses, em fins do século XVI, e aos portugueses, tendo sido recrutado para combater os aimorés na Bahia e até para reprimir os nascentes quilombos de escravos africanos.
  • O potiguar Felipe Camarão combateu os holandeses, os tapuias e os próprios potiguares (como Pedro Poti e Antônio Paraupaba), que ao contrário dele, passaram para o lado holandês.
  • Confederações intertribais, como a Confederação dos Tamoios e a Confederação dos Cariris.

Diversas lideranças pró-lusitanas receberam privilégios como sesmarias e títulos nobiliárquicos, criando-se no Brasil autênticas linhagens de chefes indígenas condecorados pela Coroa por sua lealdade a Portugal.

Alianças com invasores contra os colonizadores também ocorreram. Nações inteiras escolheram por se aliarem aos inimigos dos portugueses. Líderes como Antônio Paraupaba chegaram a residir nos Países Baixos para aprender a língua holandesa. O líder Abaupaba retornaria para os Baíses Baixos com os holandeses e lá ficaria até a morte, ainda atuando na política e buscando reestabelecer uma aliança Holanda-Potiguaras e quem sabe reconstruir o que fora perdido pelos holandeses no Brasil.

III. Tipos de guerra
Dependendo do território em disputa, dos objetivos e das nações envolvidas, distintos tipos de guerra podem ser travados. Podemos elencar os seguintes:

Corso – Corsários e piratas contratados por uma potência colonial assaltam cidades, engenhos e o comércio marítimo de outra potência colonial. Acontece no mar ou na costa.

Expedição– Expedições militares encomendadas pela Coroa para reconhecer e colonizar territórios (entradas) ou de caráter punitivo. Há também as financiadas por particulares para apresamento de índios e busca por bens comerciáveis (bandeiras). Foram bastante empregadas contra aldeamentos missionários e tribos hostis (“gentios bravos”). Ocorriam nas regiões sertanejas, e frequentemente envolviam o domínio das vias fluviais.

Guerra colonial – Disputa entre potências coloniais e seus aliados por territórios ainda não colonizados. Pode ou não envolver tropas nativas, e ocorre geralmente em zonas limítrofes de territórios coloniais.

Guerra indígena – Guerra entre um povo ou confederação de povos indígenas e colonizadores ou colonos. Pode ser uma guerrilha de resistência à colonização, uma revolta, um ataque à uma colônia.

Guerra internacional – Guerra entre duas potências estabelecidas e/ou suas colônias, com fins punitivos ou expansivos. Pode envolver tropas nativas, mas seu objetivo é retaliar a potência colonial inimiga ou tomar seus territórios.

Guerra de independência – Guerra de uma colônia, província ou território buscando emancipação do restante do corpo político (potência colonial, estado nacional, etc).

Guerra colonial indígena – Guerra entre povos indígenas apoiados por potências coloniais. Ocorre quando há um interesse militar comum entre uma nação americana e o colonizador europeu, em qualquer dos lados.

Guerra autóctone – Guerra entre povos indígenas, sem apoio de potências coloniais em qualquer dos lados. É a forma de guerra anterior à chegada dos europeus e que continuou ocorrendo em lugares onde a presença do colonizador não chegava.

O período a ser estudado vai de 1534 até a Independência do Brasil e a consequente fundação do Império, quando então está todo o território submetido à uma administração monárquica típica do mundo ocidental de sua época. O objetivo de restringir o escopo de estudo é excluir dele movimentos e guerras de cunho emancipatório das províncias como a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana, ou a Revolução Farroupilha. Estes, apesar de representarem alterações potenciais e significativas no território do Brasil, não representam um conflito entre “conquistadores” ou colonizadores, uma vez que estas áreas já estavam colonizadas e já compartilhavam de uma história comum com outros brasileiros ou lusos.

OUTRAS PARTES DA SÉRIE:

FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

Um Novo Renascimento – Parte I: Renascentismo

A Civilização Ocidental como conhecemos possui três importantes pilares: a Moral Cristã, o Filosofia Clássica (Grega, principalmente) e o Direito Romano. Não uma simples combinação entre eles, já que a mescla entre eles gerou uma mudança considerável no entendimento dos três. Não cabe a esse artigo realizar uma profunda análise da formação ocidental (de que maneira se deu; quem sabe futuramente), mas olhar para o ponto em que o ocidente começou a se definir como aquele que conhecemos hoje. Esse momento foi o que, após um início tímido na medievalidade, resgatou a filosofia clássica e impregnou o pensamento com Humanismo e Racionalismo. Esse período foi o da renascença.

Durante a medievalidade, existia uma composição estável entre os governos seculares, herdeiros da cultura “bárbara” europeia, de um resquício do Império Romano e da ascensão do cristianismo. De maneira geral, o sistema era simples e claramente hierarquizado: o território era propriedade de um Rei, legitimado pela Igreja, e partes dessa propriedade eram delegadas a vassalos. Estes prestavam conta ao rei, e dividiam a terra entre os camponeses, que trabalhavam na terra e pagavam pesados tributos (parte da produção, e parte em dinheiro), divididos entre os aristocratas, o senhor das terras, o rei e a Igreja.

Mas um fenômeno começou a desestabilizar essa estrutura: O surgimento das cidades. Esse fenômeno permitiu que pessoas não ligadas à aristocracia começassem a enriquecer. O acontecimento pode ser explicado pelo fato de que as cidades permitiram um aumento populacional que aumentou a demanda por comida, aumentando seu preço e enriquecendo inclusive os camponeses. Isso fazia com que estes pudessem comprar os terrenos em que trabalhavam e não mais precisassem cumprir para com certas obrigações.

Como não mais eram protegidos por seus senhores feudais, passaram a migrar para os burgos (cidades). Isso causou o declínio do poder não apenas do Rei, mas também daqueles que mantinham uma forte relação com o mesmo. Resultou na diminuição do poder da Igreja, que controlava de forma agressiva aquilo que poderia ser ou não ensinado. Começou a ser resgatada, daí, a filosofia clássica, cuja interpretação era limitada pelos ensinamentos do clero, restritos aos monges (intelectuais da época). É claro que esse movimento gerou uma contrapartida, que resultou no movimento barroco, mas este é matéria de outro artigo.

1. Mudanças Religiosas

Se houve um grande ataque à Igreja Católica, maior que sua perda natural de influência resultante do surgimento das cidades, foi a Reforma Protestante. Martim Lutero, principal representante do movimento, posicionou-se, por motivos religiosos, políticos e sociais contra a Igreja Católica. O marco, aqui, foram as 95 teses de Lutero.

Os conflitos entre alguns reis e o Papa, a condenação pelos católicos da usura (o que deixava os burgueses desconfortáveis), o desejo de certos nobres de deixar de pagar os tributos papais foram algumas das motivações. Combateu também a avareza da Igreja, e a acusou de paganismo.

Martim Lutero, expoente da reforma protestante

2. Mudanças Estruturais

O surgimento das cidades fortaleceu o comércio com o Oriente e incentivou a migração de inúmeras pessoas. Isso alterou a relação entre oferta e demanda de alimentos, o que os encareceu e permitiu que os camponeses comprassem as terras em que trabalhavam. Livres de suas obrigações, mas ameaçados pela falta de proteção, passaram a migrar para as cidades, alterando cada vez mais a relação explicitada anteriormente. Fica claro o efeito bola de neve que isso causou, levando o feudalismo a um forte declínio na maioria das regiões, principalmente aquelas em que a reforma protestante foi bem sucedida.

A ascensão dos burgos afetaram gravemente a estrutura feudal
Exemplo de Feudo

3. Mudanças Econômicas

Como resultado das duas mudanças anteriores, uma alteração profunda nas relações econômicas aconteceu. Com o fortalecimento do protestantismo, que era dotado de certa característica determinista, auxiliou, juntamente com o surgimento das cidades, o capitalismo a aflorar. Essa análise foi realizada por Weber, em “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. O capitalismo, com sua visão de meritocracia, era inerentemente incompatível com a noção de privilégios, vigente no sistema aristocrata feudal.

4. Mudanças Filosóficas

Aqui começam as mais determinantes mudanças para a evolução do pensamento e seu desencadeamento no período romântico (este marcado pelo pensamento iluminista). O resgate da filosofia clássica retirou Deus do centro das relações sociais e colocou o homem, criando uma filosofia humanista, antropocentrista, e em certa medida, já individualista (apesar de essa característica ser mais notada posteriormente). A filosofia clássica já era estudada na medievalidade, mas os estudos eram restritos aos escolásticos, e com uma influência mais platonista (Aristóteles foi um pouco, acredito que propositalmente, esquecido, sendo pouco lembrado por Tomás de Aquino), já que a filosofia platônica era mais compatível com a filosofia cristã. É claro que essa mudança se deu, primeiramente, de forma mais intensa nas cidades, já que a estratificação do modelo feudal ainda era justificada pela filosofia da Igreja, ainda dominante. Os principais nomes dessa mudança foram Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Boccaccio. Apesar de tudo isso, o que prevaleceu foi um neoplatonismo.

Dante Alighieri

5. Movimentos Artísticos

O período renascentista ficou marcado pelo nascimento do classicismo, que era fortemente influenciado pela arte grega. As artes sofreram uma alteração de paradigma, tendo, em geral, um apelo maior ao rigor estético e sobriedade. Na literatura, Camões foi um grande representante. A música renascentista não se desenvolveu de imediato ao classicismo, mas criou a noção de contraponto, essencial na música barroca (curiosamente, o movimento de contrarreforma). Nesse momento começou a se moldar aquilo que conhecemos como a arte clássica ocidental, rigorosa esteticamente, e de forte apelo ideológico e filosófico. A arte deixou de glorificar apenas a Deus, e passou a contemplar aquilo que era construído pelo homem. A referência à religião ainda era dominante, mas outros temas passaram a ser abordados. Algumas obras ilustres, além das apresentadas abaixo, foram a Mona Lisa e A Última Ceia, ambas de Da Vinci.

Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli – Fica evidente a influência da mitologia antiga – romana no caso.
Escola de Atenas, de Rafael Sanzio

5. Ciência

A ciência, como a conhecemos, passou a existir e ser desenvolvida no renascimento. A intelectualidade, aqui, explodiu e causou grande furor principalmente na Igreja, já que acabava por ter sua visão contestada. O nome mais conhecido é do ilustre inventor Leonardo da Vinci: além de pintor, engenheiro, matemático, anatomista. Apesar de não ter se desenvolvido à maneira contemporânea, abriu espaço para que filósofos como Descartes desenvolvessem o método científico e dessem início à Revolução Científica.

O movimento renascentista abriu caminho para dois importantíssimos movimentos culturais e filosóficos: o barroco e o romântico. Serão abordados, respectivamente, nos próximos artigos.