A Conquista do Brasil (Parte VI)

Demorou mas saiu a parte quatro desta série! Hoje vamos tratar de alguns aspectos dos conflitos que se desenvolveram ao longo da conquista do território por parte dos portugueses e luso-brasileiros.

I. Os campos de batalha
A guerra se desenvolve em diferentes tipos de terreno. Tradicionalmente, a guerra ocorre em terra e, com o desenvolvimento da marinha de guerra, na água. Com a invenção dos primeiros balões e aviões, a aeronáutica entra em cena. Em última instância, a guerra também pode ser eletrônica ou informática. Adaptando nossa análise para o contexto da América portuguesa, temos o seguinte:

Terra
Em terra, era de vital importância manter a segurança dos fortes, das vilas e suas roças, das feitorias e postos comerciais, do lado dos colonizadores. Para os nativos, era importante assegurar o território de caça, pesca e coleta, além da aldeia propriamente dita. Os índios tupinambás, por exemplo, entravam em conflito com os portugueses e tupiniquins sobretudo em novembro e agosto, períodos de coleta do abati (milho) e pesca do pirati (tainha). Ao menos uma vez no ano, os jê do interior avançavam para a costa em busca de caju, o que resultava nas guerras do caju. Territórios habitados por guarás, aves de plumas vermelhas usadas para a confecção de indumentárias, eram importantes para o comércio indígena bem como áreas de colheita do algodão.

Além de serem mais numerosos, os nativos viviam de extrativismo e por isso precisavam de áreas de coleta e caça. Disto resulta que a área a ser defendida pelos nativos era muito maior do que aquela de que dependiam os colonizadores: durante muito tempo, a ocupação européia do território brasileiro ficou restrita à costa e este espaço era suficiente para manter a população colonial.

Não haviam Estados formados no Brasil antes da colonização: os europeus e os nativos referiam-se a territórios usando nomes de montanhas, rios ou tribos identificáveis com a região. Exemplos de topônimos tupi-guarani são Araçatuba (terra dos araçás, um tipo de fruto), Iguaçu (rio grande), Guanabara (baía grande) e Ipiranga (rio vermelho). A terra dos mundurucus foi batizada, ao estilo europeu, de Mundurucânia. São facilmente identificáveis demarcações territoriais criadas pelos colonizadores, como as capitanias e sesmarias, as colônias francesas (França Antártica e França Equinocial) e a região de ocupação holandesa (Nova Holanda), bem como a região costeira do Brasil dominada pelos tupis e guaranis, denominada Pindorama.

Na terra, destaca-se um tipo de guerra: expedição de apresamento e guerra de vendeta, realizadas primeiramente entre os índios e depois pelos bandeirantes (em expedições punitivas), e o cerco às vilas fundadas por colonos.

Tropas terrestres
As forças portuguesas eram compostas de colonos armados com bestas (abandonadas em algum ponto entre a segunda metade do século XVI e o início do século XVII), arcabuzes e mosquetes, além da tradicional espada rapieira. Armas de haste como piques e lanças eram raras. Peças de artilharia eram empregadas na defesa de fortificações.

Não havia na época distinção bem marcada entre civis e militares, embora houvesse uma hierarquia, representada pelo capitão. Antes da criação de exércitos nacionais na Europa, o capitão era um nobre responsável pela propriedade, pagamento e comando de uma companhia de militares. O capitão da companhia colocava-a ao serviço do seu senhor feudal ou monarca, em troca de um pagamento.

A cavalaria organizada só viria a surgir com a organização do Regimento de Dragões Auxiliares em Pernambuco, após a guerra contra os holandeses.

Entre os nativos também não havia distinção entre civil e militar.  O armamento típico era o arco e a borduna. Mulheres auxiliavam na logística, como explicado anteriormente, mas há relatos de mulheres guerreiras também. Não haviam rankings militares, sendo a distinção entre os guerreiros feita mais pela glória pessoal do que por uma hierarquia oficial: os índios tupis que sacrificavam mais inimigos no ritual antropofágico adquiriam mais “nomes”, mais esposas e podiam usar mais adereços.

Atribui-se a chegada dos cavalos à região do Prata a dom Pedro de Mendoza, quando fundou pela primeira vez Buenos Aires em 1535, e a Alvar Nuñez Cabeza de Vaca quando trasladou cavalos do Peru para Asunción em 1541. A presença de manadas de cavalo vagando em liberdade na região é atribuída à queda de Buenos Aires, momento em que os cavalos teriam fugido. É difícil estabelecer quando os nativos passaram a usar o cavalo, mas temos um exemplo extremo que mostra o quão bem ele foi utilizado: na segunda metade do século XVIII, calcula-se que os guaicurus tinham cerca de 8 mil cavalos. Ficaram conhecidos como imponentes cavaleiros.

Água
Naturalmente, era importante também a soberania sobre os recursos hídricos, as rotas fluviais e as áreas costeiras. Isto valia tanto para colonizadores quanto para nativos, já que o transporte fluvial era essencial para o comércio de ambos, bem como as áreas de pesca e fontes naturais. No caso dos colonizadores portugueses, era de fundamental importância combater o tráfico realizado por outros europeus (ingleses e franceses) em terras brasileiras. Era comum o enfrentamento com corsários e piratas franceses, por exemplo.

O oceano
Para defender a costa, os colonizadores construíam fortes equipados com muralhas e canhões. Estes tinham por objetivo guardar os portos contra ataques de navios inimigos europeus. Para a defesa da costa, empregavam-se as embarcações à disposição, como o bergantim. Eram armadas com sete peças de artilharia (um falcão e seis berços), de acordo com a ordenança do “Alardo de 1525”. Até que ponto esta padronização era seguida no Brasil, não se sabe ao certo.

Os rios
Nos rios, a embarcação mais utilizada pelos colonizadores portugueses também era o bergantim, embarcação a remos leve, rápida, manobrável e pequena o suficiente para navegar nos principais cursos d’água. Foi muito empregada no combate à pirataria, justamente pela sua manobrabilidade e velocidade. Sua guarnição máxima era de 90 pessoas.

Da parte dos nativos, a única embarcação por eles conhecida era a canoa, que usavam para transporte, comércio e mobilização militar. Há relatos de canoas capazes de transportar até 60 pessoas. Podiam ser facilmente trazidas para a terra, o que aumentava em muito a mobilidade, e relata-se que a sua velocidade era imbatível para as pesadas embarcações europeias.

O uso de “frotas” de numerosas canoas para realizar assaltos às vilas e aldeias rivais era bastante comum. Em sua Carta sobre a fundação de Rio de Janeiro, o missionário José de Anchieta relata um assalto dos tamoios que compreendia mais de oitenta canoas.

Alma
Mais importante do que dominar uma porção de terra e suas hidrovias era manter a população nativa pacificada e aliada aos esforços colonizadores. Seria simplesmente impossível colonizar qualquer porção do continente americano sem estabelecer relações estáveis com os nativos. Um dos instrumentos mais importantes para o estabelecimento destas relações era a conversão dos nativos à fé dos colonizadores.

Católicos
Os primeiros missionários que vieram com Cabral eram franciscanos. Até 1549 os franciscanos foram os únicos missionários no Brasil. A Ordem Franciscana se estabeleceu definitivamente no Brasil somente em 1585.

Em 1549 chegaram à Bahia os seis primeiros Jesuítas, na expedição de Tomé de Souza, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega. Atendiam também fora da Bahia, nas Capitanias próximas.

Outros grupos católicos também enviaram missionários para o Brasil: em 1580 chegaram os Beneditinos e em 1584, os Carmelitas.

Protestantes
Os primeiros protestantes no Brasil foram os calvinistas franceses, que chegaram em uma expedição comandada pelo vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon à Baía da Guanabara em 1555.

Villegaignon entrou em atrito com os calvinistas sobre questões teológicas, reproduzindo nos trópicos o que acontecia na Europa. O pastor Chartier foi enviado à França em busca de instruções e os colonos protestantes foram expulsos da pequena ilha em que a colônia estava instalada (Ilha de Villegaignon). A expulsão colocou os calvinistas em contato direto com os tupinambás, sendo esse evento o primeiro contato missionário protestante com um povo não-europeu.

Em 1630, quando os holandeses conquistam Pernambuco, o calvinismo tem sua vida estendida no Brasil (em 14 capitanias do nordeste) por mais 24 anos, pelo menos até o fim da ocupação em 1654. Com a chegada de Maurício de Nassau, implantam a estrutura religiosa calvinista. Até 1654 foram organizadas 24 igrejas e congregações. A experiência terminou com a derrota holandesa.

Nativos
Os pajés estavam relacionados com os movimentos intra e extratribais das populações nativas. Durante as numerosas migrações tupis-guaranis nos tempos pré-cabralinos, a religião garantiram a dispersão com homogeneidade cultural. Eram mediadores na solução dos problemas intra e extratribais, nos quais a cura das doenças era apenas um dos itens.

Entre os Guarani existiam os caraí, que eram bem mais que pajés. Viviam afastados das aldeias e isolados: não pertenciam a uma comunidade específica. Em certos momentos se dirigiam às aldeias para realizarem longos discursos. Transitavam por qualquer aldeia, inclusive as inimigas de seu grupo de origem. Em muitos casos, eram vistos como heróis reencarnados, homens-deuses ou profetas. Só eles seriam capazes de mobilizar um grupo a sair de suas comunidades, largar para trás suas roças, toda a vida social e partir em busca da “Terra sem Mal”. Por sua vida isolada, eram exteriores à aliança política e aos vínculos de parentesco, o que explica porque eram impedimento aos esforços colonizadores: eles ficavam alheios às alianças firmadas entre europeus e chefes militares indígenas, tanto quanto ficavam alheios ao ‘cunhadismo’.

No século XVI, a atividade dos Caraís ainda não era profética. Porém, muitas vezes sob sua liderança se organizou a resistência à colonização. Algumas das guerras contra os espanhóis foram provocadas e dirigidas por profetas: eles tentaram aproveitar a situação criada pela presença dos estrangeiros para garantir seu poder.

II. Alianças
Os índios reagiram de formas distintas à presença dos europeus, mantendo relações pacíficas como o comércio e a aliança militar e conflituosas como a guerra e a revolta. Para os nativos, índios de uma nação rival ou desconhecida eram tão estrangeiros quanto um português ou francês, e por isto é compreensível que tenham se aliado a europeus no combate a outros americanos.

O apoio indígena foi crucial para a vitória da colonização portuguesa. Com este apoio, contudo, as lideranças indígenas tinham seus próprios objetivos: lutar contra seus inimigos tradicionais, que também se aliavam aos inimigos dos portugueses por idênticas razões.

Alguns exemplos das alianças:

  • Temiminós liderados por Araribóia se aliaram aos portugueses na baía da Guanabara para derrotar os franceses, que por sua vez recebiam apoio dos Tamoios.
  • O chefe tupiniquim Tibiriçá, valioso para o avanço português na região de São Vicente e no planalto de Piratininga, combatia rivais tupis e os “tapuias” Guaianá, além de escravizar os Carijós para os portugueses.
  • O chefe potiguar Zorobabé, na Paraíba e Rio Grande do Norte, aliou-se aos franceses, em fins do século XVI, e aos portugueses, tendo sido recrutado para combater os aimorés na Bahia e até para reprimir os nascentes quilombos de escravos africanos.
  • O potiguar Felipe Camarão combateu os holandeses, os tapuias e os próprios potiguares (como Pedro Poti e Antônio Paraupaba), que ao contrário dele, passaram para o lado holandês.
  • Confederações intertribais, como a Confederação dos Tamoios e a Confederação dos Cariris.

Diversas lideranças pró-lusitanas receberam privilégios como sesmarias e títulos nobiliárquicos, criando-se no Brasil autênticas linhagens de chefes indígenas condecorados pela Coroa por sua lealdade a Portugal.

Alianças com invasores contra os colonizadores também ocorreram. Nações inteiras escolheram por se aliarem aos inimigos dos portugueses. Líderes como Antônio Paraupaba chegaram a residir nos Países Baixos para aprender a língua holandesa. O líder Abaupaba retornaria para os Baíses Baixos com os holandeses e lá ficaria até a morte, ainda atuando na política e buscando reestabelecer uma aliança Holanda-Potiguaras e quem sabe reconstruir o que fora perdido pelos holandeses no Brasil.

III. Tipos de guerra
Dependendo do território em disputa, dos objetivos e das nações envolvidas, distintos tipos de guerra podem ser travados. Podemos elencar os seguintes:

Corso – Corsários e piratas contratados por uma potência colonial assaltam cidades, engenhos e o comércio marítimo de outra potência colonial. Acontece no mar ou na costa.

Expedição– Expedições militares encomendadas pela Coroa para reconhecer e colonizar territórios (entradas) ou de caráter punitivo. Há também as financiadas por particulares para apresamento de índios e busca por bens comerciáveis (bandeiras). Foram bastante empregadas contra aldeamentos missionários e tribos hostis (“gentios bravos”). Ocorriam nas regiões sertanejas, e frequentemente envolviam o domínio das vias fluviais.

Guerra colonial – Disputa entre potências coloniais e seus aliados por territórios ainda não colonizados. Pode ou não envolver tropas nativas, e ocorre geralmente em zonas limítrofes de territórios coloniais.

Guerra indígena – Guerra entre um povo ou confederação de povos indígenas e colonizadores ou colonos. Pode ser uma guerrilha de resistência à colonização, uma revolta, um ataque à uma colônia.

Guerra internacional – Guerra entre duas potências estabelecidas e/ou suas colônias, com fins punitivos ou expansivos. Pode envolver tropas nativas, mas seu objetivo é retaliar a potência colonial inimiga ou tomar seus territórios.

Guerra de independência – Guerra de uma colônia, província ou território buscando emancipação do restante do corpo político (potência colonial, estado nacional, etc).

Guerra colonial indígena – Guerra entre povos indígenas apoiados por potências coloniais. Ocorre quando há um interesse militar comum entre uma nação americana e o colonizador europeu, em qualquer dos lados.

Guerra autóctone – Guerra entre povos indígenas, sem apoio de potências coloniais em qualquer dos lados. É a forma de guerra anterior à chegada dos europeus e que continuou ocorrendo em lugares onde a presença do colonizador não chegava.

O período a ser estudado vai de 1534 até a Independência do Brasil e a consequente fundação do Império, quando então está todo o território submetido à uma administração monárquica típica do mundo ocidental de sua época. O objetivo de restringir o escopo de estudo é excluir dele movimentos e guerras de cunho emancipatório das províncias como a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana, ou a Revolução Farroupilha. Estes, apesar de representarem alterações potenciais e significativas no território do Brasil, não representam um conflito entre “conquistadores” ou colonizadores, uma vez que estas áreas já estavam colonizadas e já compartilhavam de uma história comum com outros brasileiros ou lusos.

OUTRAS PARTES DA SÉRIE:

FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

A Conquista do Brasil (Parte V)

Dando continuidade à série de artigos sobre a História do Brasil, hoje vamos entrar um pouco na questão de como eram travadas as guerras em solo brasileiro e com que tipo de tecnologia.

I. A guerra moderna

Com relação aos europeus, sua arte militar encontrava-se bem avançada e podia ser classificada como moderna (Idade Moderna). Identificam-se com a guerra da idade moderna a construção de fortes poligonais, o uso de armas de fogo (sobretudo arcabuzes) e artilharia e armaduras de placas de metal (sobretudo pela cavalaria). Este período se classifica também pela perda de importância da cavalaria pesada em campo de batalha, por causa do uso da pólvora.

No entanto, guerras coloniais não podiam ser travadas do mesmo modo que eram no continente europeu. Era inútil, além de inviável, reunir o contingente e a formação das tropas no modo tradicional. A manutenção do modo de guerrear europeu só era possível com adversários europeus. Em menor número, os portugueses se viram obrigados a adotar o modelo de guerra nativo, com aliados nativos, para empreender a colonização. O mesmo lhes ocorreu na África, e o mesmo ocorreu com os espanhóis na América Espanhola e com praticamente todas as potências coloniais.

Alguns dos avanços da guerra moderna: fortes poligonais, armaduras de placas de metal e arcabuzes.

Sendo a ocupação do Brasil anterior à Revolução Industrial, não havia um meio de produção padronizada e massiva: as armas, em ambos os lados, não eram padronizadas e eram produzidas manual e individualmente. Haviam modelos difundidos, mas isto não implica que as armas vinham de um mesmo fabricante ou seguiam um padrão.

A aquisição de armas não era feita pelo exército ou pelo governo, mas por cada militar de acordo com suas preferências e condições financeiras. O costume dos soldados pagarem pelo material que usavam chegava ao ponto destes pagarem até a munição que usavam. A “vida útil” de uma arma era longa, de forma que armas muito antigas podiam conviver com equipamentos de última geração.

II. A guerra indígena

Como tradicionalmente a expansão da agricultura e a domesticação de animais (em especial bois, cavalos, ovelhas, cabras e porcos) funcionam como marcos para o início da construção de sociedades urbanizadas e complexas, isto coloca alguns empecilhos quando vamos estudar sociedades que se desenvolveram no continente americano, onde a população humana é relativamente mais recente e animais como o touro e o cavalo não existem na natureza. O que é certo, no entanto, é que os americanos viveram isolados das culturas africanas, europeias e asiáticas, o que explicaria o desenvolvimento deficitário da navegação, a baixa difusão da metalurgia e o desconhecimento de metais como o ferro e o bronze.

A arte militar dos povos indígenas do Brasil, de um modo geral, não chegava ao nível daquela da Antiguidade de povos europeus ou asiáticos: não possuíam armas de metal, cavalaria, fortificações de pedra, nem marinha de guerra. Contudo, este desequilíbrio tecnológico é contrabalançado ao longo do período colonial com a adoção, por parte dos nativos, da tecnologia europeia. São notáveis os casos da metalurgia e da domesticação do cavalo, além da aquisição de armas de fogo. Os nativos abruptamente saíam da “Idade da Pedra” para a Idade do Ferro.

Podemos dizer que os grupos indígenas davam uma grande importância à guerra. Esta era parte fundamental de sua cultura, em diversos momentos, como na captura de mulheres para casamento ou no esquema que se chama de guerra de vendeta (vingança): os conflitos se iniciavam para vingar ofensas passadas. O objetivo maior era a captura de prisioneiros para que estes fossem sacrificados e devorados de forma ritual, completando a vingança. Naturalmente estes rituais e as baixas em combate levavam a novas vinganças, reiniciando o processo. Este ciclo de captura, execução e canibalização do inimigo era especialmente importante para os índios tupis: marcava o início da vida adulta de um homem, lhe permitindo o casamento. A própria reprodução e sobrevivência da tribo dependia do sucesso na guerra, da captura, execução e consumo de muitos inimigos.

Uma das conseqüências desse modo de fazer a guerra era um procedimento ritual de combater, onde os guerreiros procuravam afirmar sua masculinidade através da forma como lutavam e capturavam os inimigos para o sacrifício, bem diferente de uma guerra europeia ou asiática. Havia a necessidade do combate aproximado, o que favoreceu o desenvolvimento de armas específicas para a luta corpo-a-corpo, que se somavam ao arco e flecha, de uso cotidiano de todas as culturas indígenas.

Ilustração de um combate entre tupinambás e maracajás. Não está claro qual dos lados é qual. Repare nas armas: borduna, arco e escudo.

As armas usadas não empregavam metais, desconhecidos pelos nativos, sendo os elementos cortantes feitos com as matérias-primas disponíveis na natureza: madeira (endurecida a fogo ou não), ossos e principalmente pedras, como o quartzo e o sílex.

A guerra, portanto, não é uma guerra de conquista: é uma guerra ritual. É importante, no entanto, levar em consideração que guerras tribais costumam ser mais violentas em termos de baixas relativas. Proporcionalmente, guerras tribais matam mais do que guerras convencionais.

III. O mito do bom selvagem
War Before Civilization: the Myth of the Peaceful Savage
é um livro de Lawrence H. Keeley, um professor de arqueologia na University of Illinois especializado na Europa pré-histórica. O livro trata de guerras conduzidas ao longo da história humana por sociedades com pouca tecnologia. Keeley conduz uma busca por evidências arqueológicas de violência pré-histórica, incluindo assassinatos, massacres e guerras. Ele também observa sociedades de períodos mais recentes – que nomeamos como tribos ou povos – e sua propensão à guerra.

Se sabe há muito tempo, por exemplo, que muitas tribos das florestas tropicais sulamericanas se envolvem em guerras frequentes e terríficas, mas alguns acadêmicos haviam atribuído seu vício à violência como uma má influência da cultura ocidental.

Keeley diz que sociedades pacíficas são uma exceção: entre 90 e 95% das sociedades conhecidas dedicam-se à guerra. O atrito de numerosas batalhas a curta distância, característica da guerra em sociedades guerreiras tribais, produz um índice de mortandade de até 60%, comparado com o 1% dos combatentes de uma típica guerra moderna.

Massacres ocorreram entre inúmeros povos americanos. As mortes em massa ocorriam muito antes de qualquer contato com o europeu. Os registros de missionários nas áreas fronteiriças entre Brasil e Venezuela mostram uma constante luta entre tribos Yanomami por mulheres ou prestígio, e evidenciam a guerra contínua para a escravidão de tribos vizinhas como os Macu, antes da chegada de colonizadores europeus com seu governo. Mais de um terço dos homens Yanomami, em média, morrem na guerra.

A cabeça do inimigo: um troféu de guerra para os Munduruku do Brasil pré-cabralino.

De acordo com Keeley, entre os povos indígenas das Américas, somente 13% não se envolvia em guerras com os vizinhos ao menos uma vez ao ano. A prática pré-colombiana de usar escalpos humanos como troféus de guerra é bem documentada. Outras práticas incluem a coleção de troféus, como a cabeça do inimigo.

Documentam-se ainda guerras cíclicas, como a guerra do caju, a guerra do milho e a guerra da piracema.

IV. A mobilização militar e a logística militar indígena

Segundo Thevet, as batalhas indígenas de grandes aldeias poderiam envolver seis,  dez ou até doze mil homens. Para tal, era necessária uma mobilização e uma preparação antes de atacar uma aldeia inimiga. Outra questão levantada por ele é “o fato de os selvagens americanos jamais assinarem tréguas, ou pactos, qualquer que seja o grau de inimizade entre si, como fazem as demais nações, mesmo as mais cruéis e bárbaras”, embora tenhamos conhecimento de que os índios usavam a diplomacia para angariar aliados europeus na sua luta contra os inimigos americanos tradicionais.

Os tupinambás reuniam-se em uma espécie de assembléia, composta exclusivamente por homens adultos, onde decidiam os assuntos militares. O ato preliminar da guerra é este conselho dos anciãos guerreiros da tribo, no qual todos se expressam. O local da reunião é o centro da aldeia e as mulheres não tomam parte na cerimônia.  Se os maiores manifestam-se favoráveis à guerra, a ordem de mobilização é imediatamente levada a todos. Nessa ocasião, também se determina o tempo da partida, que coincide com o da safra de algum fruto como o caju (guerra do caju), o milho (guerra do avati) ou a época da desova de algum peixe, como a tainha (guerra da piracema).

Construídas as canoas, aceradas as flechas, cozida a farinha, consulta-se novamente o pajé, que aguarda o desígnio dos sonhos. Se os sonhos são favoráveis, partem os guerreiros, após as danças e libações rituais do costume. As plumas e adornos em geral fazem parte do material bélico. Uma descrição de Thevet revela um pouco da divisão de tarefas:

Seguem as esposas a seus maridos na guerra, não porque vão combater, a exemplo das amazonas, mas porque precisam carregar os alimentos e deles cuidar, assim como transportar outras munições necessárias à guerra (pois, algumas vezes, empreendem viagens, que duram de cinco a seis meses). E, quando partem para essas longas guerras, os selvagens lançam fogo às suas palhoças, ocultando, na terra, os bens de maior valor, que só tornam a buscar quando regressam da empresa.

Na ato da partida (também em todas as ocasiões em que levantam acampamento), os “roncadores” fazem soar a inúbia, espécie de oboé destinado a alvoroçar e a incentivar os guerreiros. Cada guerreiro transporta suas armas, a rede e sua porção de farinha. Os líderes são acompanhados pelas mulheres. Marcham em fila indiana, os mais valentes na dianteira. No mar, não se afastam muito da costa. Assim que se atingem terras alheias, o espia trata de abrir o caminho ao exército.

Com relação à capacidade de mobilização, para a guerra de cerco, André Thevet relata expedições militares que duram até um semestre. Hans Staden testemunha um cerco de quase um mês. José de Anchieta testemunha operações militares dos tamoios envolvendo quarenta e oito canoas, o que na média significava uma tropa de quase quinhentos guerreiros.

V. A batalha indígena

Dois dias antes chegar na aldeia inimiga acampam, mas não fazem fogo, para não serem percebidos. Os ataques são feitos geralmente à noite, quando se reúnem em massa. Assim que são advertidos ou suspeitam da vinda de inimigos, fincam no chão, ao redor da sua posição, numerosos paus afiados, cujas pontas, embora saindo à flor da terra, quase que não se veem. Estas estrepes improvisadas ferem os inimigos nos pés ou outras partes do corpo.

A fim de surpreender o inimigo, ocultam-se nos matos à noite, ali permanecendo o espaço de tempo necessário para o assalto. Quando atacada a aldeia inimiga, ateiam fogo às cabanas, afim de obrigá-los a sair do abrigo, juntamente com sua bagagem, suas mulheres e seus filhos.

Se encontram as aldeias protegidas de caiçaras, erguem outra cerca de ramos e espinhos, próxima do acampamento inimigo, e de construção em construção, em breve estão juntos sitiantes e sitiados. Ao lado dos redutos, abrem buracos no chão e constroem estrepes. Nos sítios ou cercos, usam flechas inflamadas e asfixiam os inimigos com fumo de pimenta.

No entanto, como este tipo de expedição era frustrado pelos colonizadores, os nativos também optam por outros meios de combate. Dizia-se dos aimorés, por exemplo:

Nunca andam juntos, senão poucos, e, sem serem vistos, cercam a gente e a matam, e com tanta ligeireza se tornam a recolher e meter pelo mato como se foram cabras silvestres, correndo muitas vezes sobre os pés e as mãos, com o arco e flecha sobre as costas, e por isso se lhes não pode fazer guerra, nem com ela prevalecem contra eles, porque nunca pelejam em esquadrão feito, nem em campo descoberto, senão com ciladas e assaltos repentinos, por detrás das moitas e árvores, sem os homens os poderem ver, se não quando se sentem flechados, e por este modo de tal maneira tem infestado toda a costa do mar (…)

Parecem empregar suas estratégias furtivas de caça para atuar como guerrilhas nos matos. Talvez esta estratégia de combate tenha impedido os aimorés de serem expulsos da costa pelos tupis, como outros tantos grupos provavelmente foram. No entanto, Hans Staden também é capturado assim pelos Tupinambás: em vez de sofrer um ataque em sua posição fortificada, é pego fora dela por um pequeno grupo hostil.

VI. As armas e tecnologias indígenas
Algumas das armas e tecnologias bélicas à disposição dos índios estão listadas a seguir. Vale lembrar que nem todas elas foram empregadas por todos os grupos e em todas as épocas. Por exemplo, as boleadeiras só eram empregadas pelos índios da região Sul, nos Pampas e na Patagônia, e os venenos extraídos da Strychnos toxifera e dos sapos dendrobatídeos só podiam ser obtidos na Amazônia. As armas também não permaneceram sempre as mesmas: ao entrar em contato com europeus, os índios adquiriam armas de ferro, armas de fogo ou cavalos.

Borduna, tacape ou ibirapema – Parte importante da cultura bélica indígena, não era uma ferramenta de uso diário como o arco e flecha, mas feita unicamente para a guerra e para o sacrifício ritual. Nada mais era do que uma clava. As formas dessa arma e até os nomes variam de grupo indígena para grupo indígena.

Não se encontra registro do uso de machados ou bordunas com bordas cortantes, feitos de peças de sílex ou quartzo, em combates no Brasil, apesar dos machados serem ferramentas de uso diário.

A borduna ou tacape dos tupinambás é descrito assim em Histoire d’un Voyage Faict en la Terre du Brésil por Jean de Léry:

(…) sua forma é chata ovalada num extremo, medindo dois palmos de diâmetro na parte mais larga, e depois cilíndrica, medindo duas polegadas também de diâmetro. As bordas da parte oval são afiadas como machados, e como eles cortam, visto serem feitos de madeiras duríssimas.(…)

Arco e flecha – A principal arma. Devido à sua cultura, as atividade de caça eram constantes entre os homens e estes, desde a infância, treinavam com eles, adquirindo grande habilidade em seu manejo.

Todos os arcos brasileiros têm, basicamente, a mesma característica – são de madeira e de construção singela, o que limitava a sua força e alcance efetivo, (cerca de 30 metros). Cada grupo indígena tem suas variações quanto ao comprimento da arma (e portanto a força do arco), como as cordas eram colocadas, o tipo de haste das flechas e de pontas, tipo de empenagem e decoração.

O arco é assim descrito em Histoire d’un Voyage Faict en la Terre du Brésil, por Jean de Léry, um arco tupinambá:

Depois vem o arco, ou arapá, feito de madeira negra, mais comprido e grosso que o que temos aqui, de modo que um europeu não pode atirar com ele, coisa fácil, aliás, a um tupinambazinho de dez anos.

As cordas são de tucum, tão resistentes, apesar de finas, que um cavalo com elas pode tirar um veículo.

Quanto às flechas, medem quase uma braça e compõem-se de três partes, a saber: a parte média, de caniço, e as extremas, de madeira dura, primorosamente ligadas com embira. Numa ponta vão duas penas, ajustadas e ligadas com fio de algodão; na outra vai ou osso pontiagudo ou lasca de bambú acerado como lanceta.

Usam ainda o ferrão da cauda da arraia, o qual é venenoso. Depois da chegada dos franceses e peros passaram a utilizar-se de pregos.

Pero Vaz de Caminha também faz uma descrição do arcos tupiniquim, com as flechas de ponta feita de cana cortada:

Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio — o Capitão a Ela há de enviar.

Flechas envenenadas: usa-se venenos nas pontas das flechas ou dardos para paralisar a presa. As toxinas do veneno se ligam ao sítio fixador de acetilcolina, neurotransmissor responsável pelas junções neuromusculares. Assim, essa toxina compete com a acetilcolina por esse receptor e isso debilita a função muscular. Esse déficit é fatal caso músculos da respiração sejam afetados.

Strychos toxífera, da qual se extrai o curare, veneno paralisante e letal com o qual os índios embebem as pontas das flechas e lanças. Um de seus subprodutos é a estricnina, um alcalóide cristalino muito tóxico.

As pontas dessas flechas são embebidas em substâncias que agem analogamente ao veneno da cobra, ou seja, competem pelos receptores de acetilcolina. Os índios sul-americanos utilizam curare. O curare atua como relaxante muscular que prejudica relevantemente a fisiologia muscular.

Outra fonte de veneno letal para os índios, pelo menos os amazônicos, são os alcalóides letais contidos na pele de batráquios. No extremo leste da Floresta Amazônica, na Colômbia, reside o animal mais venenoso do planeta: Phyllobates terribilis, uma espécie de rã amarela cuja toxina – a homobatracotoxina – causa a falência múltipla dos órgãos em humanos.

O uso do aguilhão da arraia como ponta de flecha também é registrado. O veneno da arraia, embora não seja fatal quando não atinge o peito ou o abdômen, causa dores musculares terríveis.

Zarabatana – Uma arma que consiste num tubo originalmente de madeira, pelo qual são soprados pequenos dardos, setas ou projéteis.

As zarabatanas eram utilizadas pelos povos indígenas da América do Sul (Amazônia e Guianas) e Sudeste da Ásia, e por algumas tribos da América do Norte, para caçar pequenos animais, como pássaros, esquilos, macacos e coelhos. As setas utilizadas, muito leves, possuíam em média de 10 a 15 cm, e tinham pontas embebidas em venenos ou substâncias tóxicas — curare, secreção de sapos e seivas venenosas. As seivas eram extraídas de plantas como a Antiares toxicaria e a Palicourea marcgravii, entre outras. Não era comumente usada como arma de combate, apenas para caça e ação furtiva.

Lança – Arma menos difundida que as anteriores. Pode ser dividida em três tipos distintos: as azagaias, as lanças de uso a pé e as de uso a cavalo. As lanças a cavalo não são pré-cabralinas, já que só foram empregadas após a chegada do Europeu e da difusão do cavalo como animal de montaria, pois este não era nativo das Américas. Contudo a importância do cavalo para determinadas tribos indígenas como os guaicuru e a influência que essas tiveram na formação de uma “cultura” na Cavalaria Brasileira, não pode ser menosprezada.

As azagaias (ou dardos) eram armas curtas de arremesso usadas em substituição ao arco e flecha em algumas tribos do alto amazonas.

As lanças de uso a pé eram armas perfurantes, assim como as de uso a cavalo, mas o seu emprego foi mais restrito no Brasil. Índios que se adequaram ao uso do cavalo, como os guaicurus e charruas, fizeram mais uso da lança.

Fogo – Os índios também empregavam táticas incendiárias, tanto para a caça como para a guerra. Em Singularidades da França Antártica, Thevet descreve o uso do fogo como meio de disseminar o pânico e forçar os inimigos a sair de posições fortificadas:

[…]quando alcança a aldeia, usam o artificio de lançar fogo às cabanas dos adversários, afim de obrigá-los a sair do abrigo, juntamente com sua bagagem, suas mulheres e seus filhos.

É registrado o seu uso em cercos a aldeias rivais e fortificações portuguesas. O objetivo da chuva de flechas incendiárias que antecedem a investida é atear fogo às coberturas das cabanas, feitas de palha.

Fumaça de pimenta – A pimenta também funcionava como arma de cerco. Fazia-se “fumo de pimenta” para forçar os ocupantes de uma determinada posição a abandoná-la. Isso se dá pelo composto químico capsaicina, que é irritante para os mamíferos e produz a sensação de queimação em qualquer tecido com o qual entre em contato.

Hans Staden documenta o uso da pimenta como arma em seu livro Duas Viagens ao Brasil:

Ouvi-lhes dizer também que utilizam pimenta, que há em sua terra, e com que conseguem afugentar das fortificações seus inimigos. Isto se dá da seguinte maneira: quando o vento sopra, fazem uma grande fogueira e lançam-lhe dentro um montão de pés de pimenta. Se a fumaça dá de encontro às cabanas, o inimigo tem então de sair para fora.

Hans Staden no seu relato Viagem ao Brasil relata o uso desta arma contra embarcações portuguesas:

Os selvagens nada nos puderam fazer nas embarbações; arrumaram, porém, porção de lenha entre a margem e os barcos, a que deitaram fogo, a ver se nos incendiavam, e queimavam uma espécie de pimenta, que lá cresce, com o fim de nos fazerem abandonar as embarcações por causa da fumaça.

Boleadeiras – Arma e instrumento de caça dos indígenas da Patagônia e dos Pampas.

Consta de duas ou três bolas de pedra polida. O diâmetro de cada bola é de uns 10 cm nas boleadeiras de combate. As pedras são unidas unidas por tientos ou guascas, tiras de couro. Os indígenas usavam como matéria prima para os tientos o couro de guanaco e o couro do pescoço ou tendão da pata de nhandú (ema), antes de usarem o couro bovino.

Os europeus notaram a existência desta arma no início da Conquista, quando a viram nas mãos de hets, charruas, tehuelches, mapuches e pampas em 1520. Foi muito efetiva na Guerra de Arauco, onde os mapuches conseguiam neutralizar a ação da cavalaria espanhola.

Inicialmente os aborígenes usavam uma só pedra polida e circundada por um sulco no qual se atava um só tiento ou corda bastante grande e, com isto, golpeavam à distância sem perder a pedra. Esta arma funcionava foi chamada pelos espanhóis e crioulos de bola perdida. Quando faltavam pedras se improvisavam boleadeiras com bodoques de terracota ou mesmo osso. Na região patagônica se usava o nodo esférico que o fungo llao llao (Cyttaria darwinii) provoca nos ramos do ñiré (Nothofagus antarctica) na falta de pedras.

“Potreira”

A forma de uso mais comum desta arma é o “rebolear”, que consiste em girar as pedras pelos tientos por sobre a cabeça e jogá-la contra o alvo. Se é jogada com o objetivo de capturar uma presa, a boleadeira é lançada às pernas ou patas, para que os tientos se enrosquem ao redor delas. Em combates corpo a corpo era frequente não soltar a boleadeira mas sim usar uma das pedras como maça, principalmente sobre a cabeça do oponente.

À direita, uma maça inca. O formato lembra o que seria uma ‘bola perdida’, ou a boleadeira de uma pedra só. Esta seria a origem dos outros tipos.

Tipos de boleadeiras: A boleadeira pequena e de apenas duas bolas é chamada “ñanducera” (nhanduzeira) e era conhecida com o nome de chumé ou ‘tálakgáp’n pelos tehuelches. É usada para a caça ou captura de pequenos animais. A boleadeira de três bolas e maiores dimensões, conhecida como “potrera” (potreira) e chamada yachiko pelos tehuelches, se usa para o combate ou para capturar animais grandes como cavalos ou touros.

Escudos – Os índios, historicamente, ainda faziam uso de outros equipamentos de combate, como escudos, feitos de madeira ou de couro de anta, mas os registros sobre estes são escassos, apesar de alguns cronistas como Thevet terem ficado muito impressionados com eles, como mostra a seguinte passagem:

A terceira peça de seu armamento é o largo escudo que usam nos combates. Ele é feito de couro de um animal local, semelhante às nossas vacas no que se refere à cor, mas diferentes no tamanho. Estes escudos são tão fortes e resistentes quanto os broquéis barceloneses, não se deixando penetrar nem mesmo pelas balas dos arcabuzes!

Em História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, de Jean de Léry, também há uma breve descrição:

Finalmente, usam de rodelas de couro de tapiraçú, largas como um fundo de tamboril alemão. Quando brigam não se cobrem com eles, como praticam os nossos, mas deles se utilizam para resguardo contra as setas inimigas.

O Escudo do Uaupés, feito de trançado, mede 64 cm de diâmetro.

Um escudo feito de trançado, usado pelos índios Tukano, foi encontrado na região do Alto Rio Negro, noroeste do Amazonas em 1861 por uma expedição de Gonçalves Dias que assim o descreve:

Objeto raro, e tanto que há muitos na província que lhe ignoram a serventia. Bem tecido resiste à ponta de taquara ou do Curabi; leve, não cansa, e pode-se manejar com ele uma boa arma de defesa; facilmente portátil não embaraça a carreira.

Proteção corporal – A ausência de lâminas cortantes no combate pode ser o motivo de não existirem registros referentes ao uso de armaduras por parte dos indígenas. No entanto, índios dos pampas como charruas e minuanos usavam uma peça de roupa feita de couro de boi, com o pelo voltado para dentro, coberta com grafismos na parte externa. Era chamada pelos charruas de quillapi e pelos minuanos de cayapi.

Armadilhas, estruturas e fortificações

Estrepes – Thevet descreve o uso de dispositivos para ferir os pés do inimigo e impedir o seu avanço. Porém, não dá nenhuma descrição em detalhes da aparência ou de como é feito.

Ao lado dos redutos, abrem-se buracos no chão e constroem-se estrepes

Um outro dispositivo, que Thevet compara à este, também é descrito:

(…) plantam em terra, em redor de seus tugúrios, a cerca de um tiro de arco, numerosos paus agudíssimos, cujas pontas, embora saindo à flor da terra, quase que não se veem (comparáveis em tudo aos estrepes), nos quais os inimigos ferem os pés descalços, ou mesmo outra qualquer parte do corpo.

Caiçara – Palavra indígena para cerca de proteção. Eram postes dispostos ao redor da aldeia para proteger de ataques de tribos inimigas ou onças.

Em seu livro Duas Viagens ao Brasil, Hans Staden faz a seguinte descrição:

[…] levantam ao redor das cabanas uma cerca de varapaus feitas de troncos de palmeiras rachados. Fazem esta cerca, com aproximadamente uma braça e meia de altura, tão cerrada que nenhuma flecha pode passar por elas. Mas têm pequenos buracos a partir dos quais atiram para fora. Ao redor desta cerca de varapaus levantam outra cerca, uma paliçada de estacas longas e grossas, mas não colocam as estacas tocando-se umas às outras, e sim apenas próximas o suficiente para que uma pessoa não consiga passar por elas. […]

Tricheiras e barricadas – Hans Staden, em seus relatos, menciona a construção de fortificações improvisadas com troncos e buracos abertos pelos índios. Não menciona com que ferramenta os índios cavaram os buracos e derrubaram os troncos, no entanto.

Ao redor do lugar onde estávamos sitiados havia uma mata, na qual tinham construído dois redutos de troncos grossos, onde se recolhiam à noite; e quando nós os atacávamos, para lá se refugiavam. Ao pé destes redutos abriam buracos no chão, onde se metiam durante o dia e de onde saíam para nos guerrilhar.

Bloqueio das vias fluviais – Hans Staden no seu relato Viagem ao Brasil relata uma tática adotada pelos índios para parar as embarcações enquanto estas navegavam pelos rios: derrubar troncos de árvore ao longo da via.

Os selvagens, porém, tinham atravessado grandes troncos de árvores no rio e se postaram muitos deles nas duas margens, com o intuito de impedir a nossa viagem. Forçamos, porém, a tranqueira e ao meio dia mais ou menos estavamos de volta sãos e salvos.

Numa segunda tentativa, os índios tentam acertar com os troncos diretamente sobre a embarcação, na tentativa de pará-la:

[…] voltamos, outra vez, para o lugar sitiado. No mesmo ponto em antes haviam posto obstáculos tinham os selvagens de novo derrubado árvores, como anteriormente; mas acima do nível d’água e, na margem, tinham cortado duas árvores de modo a ficarem ainda em pé. Nas ramagens amarrarm-lhes uns liames chamados cipós que crescem como lúpulo, porém mais grossos. As extremidades ficavam amarradas nas estacadas e, puxando por elas, era seu intento fazer tombar as árvores caindo sobre as nossas embarcações. Avançamos para lá; forçamos a passagem, caindo a primeira das árvores para o lado da estacada e a outra na água, um pouco atrás do nosso barco.

Tecnologia naval indígena
A principal, e bem dizer a única, embarcação indígena era a canoa. Feita a partir de um único tronco de madeira escavado, a canoa é, junto com a balsa, uma das mais antigas embarcações utilizadas pelo homem. Aparentemente tosca, sobrevive há milênios graças à facilidade construtiva e ao seu poder de se moldar às necessidades.

Segundo todos os depoimentos, as canoas indígenas anteriores ao Descobrimento locomoviam-se a remos, inexistindo o uso ou o conhecimento da vela em toda a América. Os índios navegavam pela costa e pelos rios dentro das canoas e diz-se que guerreavam dentro delas mesmo, com seus arcos, quando necessário.

Hans Staden comenta, em 1556, o processo de produção das canoas a partir de peças inteiras de madeira extraídas de troncos:

Existe lá um tipo de árvore a que chamam de Igá-Ibira. As cascas dessa árvore desprendem-se de cima até embaixo num único pedaço, e, para tanto, eles erigem uma proteção especial em torno da árvore, de forma a que se desprenda inteira. Em seguida pegam a casca e levam-na da montanha até o mar. Aquecem-na com fogo e curvam-na para cima na frente e atrás, mas antes disso amarram no centro pedaços de madeira no sentido transversal, para que não se deforme. Assim fazem canoas onde até trinta deles podem ir à guerra. As cascas têm uma polegada de espessura, cerca de quatro pés de largura e quarenta de comprimento. Remam com essas canoas rapidamente e viajam até onde quiserem. Quando o mar está revolto, puxam as canoas para a praia até que o tempo volte a ficar bom. Não vão mais do que duas milhas mar adentro, mas viajam por longas distâncias ao longo da costa.

Quanto aos carijós (guaranis), usavam duas espécies de canoas: uma construída de um pau só, que cavavam a frio quando a madeira era mole ou por meio do fogo,  e que era chamada igára (y-gára, a que flutua). As grandes canoas deste tipo chamavam igára-açu (canoa grande) ou igára-tê (canoa verdadeira), e comportavam de 40 a 60 pessoas. As pequenas eram conhecidas por igára mirim (canoa pequena). O outro tipo de canoa era construído de casca de certas árvores escoradas por dentro, tendo os extremos ligados com cipó. As canoas deste tipo eram menores e mais fracas. Chamavam-nas ubá (uba-yá, casca aberta) ou piroga (esfolada). Denominavam as maiores embarcações deste tipo ubá-açú ou bacuçú.

Conta Thevet que estas embarcações feitas de casca tinham de 5 a 6 braças de comprimento e 3 pés de largura, comportando de 40 a 50 homens e mulheres. As mulheres eram empregadas na remoção da água que entrava na canoa. Remavam de pé com um remo chato dos dois lados, o qual seguram pelo meio.

Tanto as igáras, como as ubás e pirogas eram usadas na pesca, no comércio e na guerra. As destinadas a este último propósito, nas quais iam o chefe tuxaua, traziam como distintivo um maracá à proa e por isso eram denominadas igatim (canoa de bico) ou maracá-tim.

VII. As armas européias

Armaduras – As armaduras na Europa foram ficando cada vez mais raras com a difusão das armas de fogo. Uma conseqüência disso foi que as espadas passaram a ser mais leves e manejáveis, com guardas mais complexas para proteger a mão sem armadura. Espadas com estas linha gerais permaneceram em uso até o fim do uso da arma branca como equipamento bélico. Gradualmente, a partir do meio do século XVI, peças da armadura foram discartadas para aliviar o peso dos soldados. De fato, a única proteção disponível contra as armas de fogo eram barreiras como paredes de pedra, fortificações, trincheiras, rochas ou árvores.

Rapieira – No final do século XVI começaram a se tornar predominantes na Europa as espadas para uso diário denominada rapieiras (“espada ropera”, espada que se usa com roupa e não armadura), em detrimento das espadas exclusivas para o combate. Eram armas mais adequadas para a esgrima (os primeiros manuais de esgrima são escritos para essa arma), tendo lâminas longas e guardas elaboradas para proteger as mãos e prender a arma do adversário.

Era uma peça de uso cotidiano de militares e também de civis, mesmo porque a distinção entre civis e militares não era clara nos séculos XVI e XVII. A ética que permeou o período colonial tinha a espada como atributo da nobreza (os plebeus não usavam armas), de forma que os que podiam buscavam adquirir e andar permanentemente com uma espada.

Faca e adaga – Ferramenta de uso quase obrigatório e diário num período em que era o único talher disponível, além de ser empregada em trabalhos rotineiros. Todos carregavam uma adaga ou faca. A adaga de uso bélico também era conhecida como “misericórdia”, termo que vem da Idade Média, quando os cavaleiros carregavam uma adaga para enfiar nas juntas da armadura de um adversário derrotado.

Armas de haste – Um dos artefatos bélicos mais comuns do século XVI na Europa. Devido às características das lutas que aqui se travaram, é possível que não tenham sido comuns no Brasil.

A única arma de haste que aparece em registros históricos do Brasil em números razoáveis era o pique. O Regimento de Tomé de Souza, de 1548, determinava que cada capitão-mor e senhor de engenho tivesse um determinado número de lanças ou chuços (piques).

O pique era uma longa lança, fundamental na Europa para a defesa da infantaria contra a cavalaria, ameaça que não existia no Brasil dos séculos XVI e XVII, justificando a pouca importância desta arma aqui.

Besta – A base das milícias portuguesas desde o século XIII eram os besteiros do conto, cidadãos chamados para o serviço militar que deveriam ser equipados com uma besta de polé. No século XVI as bestas já se estavam em decadência por causa da difusão das armas de fogo.

Tiveram uso no Brasil até a segunda metade do século XVI. A primeira fortificação construída no país, em 1502, foi guarnecida por doze besteiros (de um total de vinte e quatro homens). Uma das primeiras “entradas” feitas, em 1530, era composta por oitenta homens, dos quais quarenta besteiros. O Regimento de Tomé de Souza (1548) determinava que os capitães-mores e senhores de engenho tivessem um número idêntico de armas de fogo e bestas em seus arsenais. Esta é uma das últimas referências ao uso desta arma no Brasil. Os termos do Regimento de Tomé de Souza referentes à defesa foram reeditados em 1612 para o Governador Gaspar de Souza. Neste novo documento as bestas foram substituídas por mosquetes.

Espingarda – Nome genérico das armas de fogo usadas em Portugal no início do século XVI. O termo espingarda já convive com o nome arcabuz em meados do século XVI, como no caso do regimento de Tomé de Souza (1548) que determinava que os capitães eram obrigados a ter “vinte arcabuzes ou espingardas”.

De forma genérica, a arma tinha cerca de 1,2 m a 1,5 m de comprimento e de 4 a 6 kg de peso. Dispava uma bala esférica de chumbo, de 15 a 20 mm de diâmetro, que era capaz de penetrar a maior parte das armaduras usadas na Europa e em todas as proteções disponíveis para os indígenas das Américas.

Arcabuz – Não apresentava diferenças marcantes em relação à anterior, sendo uma arma portátil, de peso por volta de 5 kg e com calibre na faixa de 15 a 20 mm. Seu alcance máximo era de até 800 metros, mas nunca era empregada em distâncias superiores a 150 metros, pois as chances de se atingir um alvo a esta distância eram desprezíveis – mesmo que este fosse muito grande.

Apesar de ser a arma mais utilizada e apropriada para o Brasil dos séculos XVI e XVII, não era a preferida: o mosquete, apesar de mais pesado, dava maior status (e soldo), de forma que estes preferiam ser classificados como “mosqueteiros”.

Mosquete – Arma introduzida no final do século XVI, em função do uso, na cavalaria, de uma armadura reforçada capaz de resistir ao disparo de um arcabuz. Tinha um calibre mais reforçado, sendo mais pesada que o arcabuz. Chegava a pesar 11 kg, com calibre de até 24 mm e um alcance de cerca de 220 metros (embora a possibilidade de acertar a esta distância fosse pequena). Para ser disparada, era usada com uma forquilha.

Apesar do prestígio dessa arma, ela foi desaparecendo ao longo da segunda metade do século XVII, pois a cavalaria abandonou qualquer tentativa de proteção contra as balas dos atiradores. No final do século, o mosquete já tinha sido totalmente substituído pelos arcabuzes, agora rebatizados de espingarda.

Artilharia
Nos navios, empregavam-se as colubrinas como peças de artilharia naval (para afundar outros navios) e os falconetes como artilharia anti-pessoal. É provável que o falconete tenha sido empregado nos bergantins dos colonizadores contra ataques que viessem a sofrer enquanto navegavam pelos rios.

Um falconete.

Hans Staden menciona que fez guarda num posto avançado guarnecido por peças de artilharia, mas não especifica qual tipo de peça. A julgar pelo tipo de inimigos que enfrentavam, provavelmente eram falconetes. O falconete era a mais ligeira das peças de artilharia utilizada a bordo dos navios dos séculos XV e XVI, e a maioria dos navios portugueses que se lançavam ao mar tinham este como armamento.

VIII. Tropas mistas

Para encerrar, é necessário compreender que não há uma oposição entre estes dois conjuntos. Ou seja, não há uma “guerra primitiva contra uma guerra moderna”. Os portugueses precisavam adequar-se ao contexto americano, fazendo alianças e  guerreando no modo nativo. Os indígenas, por sua vez, assimilavam tecnologia fosse pela compra ou toma, fosse pela aliança com inimigos dos portugueses. Para se ter uma ideia, numa bandeira, a proporção de indígenas era sempre maior que a de brancos, quase sempre mais que o dobro.

Indígenas guerreavam entre si tanto quanto europeus guerreavam entre si. O uso de artilharia naval, navios e fortes por parte de portugueses e espanhóis era dedicado exclusivamente ao combate de traficantes, corsários e invasores europeus como os franceses, os holandeses, os ingleses. As tropas indígenas tomavam parte nos combates por todos os lados, e não havia a possibilidade de se guerrear por aqui sem a mescla dos elementos europeus aos nativos.

OUTRAS PARTES DA SÉRIE:

FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

A Conquista do Brasil (Parte III)

Dando continuidade à nossa série A Conquista do Brasil. Como já abordamos a situação dos nativos americanos no artigo anterior, o artigo de hoje abordará o período das grandes navegações, a era dos descobrimentos, a chegada dos portugueses na costa brasileira e finalmente seu primeiro contato com os nativos.

Quadro “Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500” (1922, óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva. 330 x 190 cm.)

I. A Era dos Descobrimentos
Era dos descobrimentos (ou Grandes Navegações) é o período entre o século XV e o início do século XVII, durante o qual os europeus exploraram o globo buscando novas rotas comerciais. É marcada pelas explorações marítimas realizadas por portugueses e espanhóis entre os séculos XV e XVI, que estabeleceram relações com África, Américas e Ásia, em busca de uma rota alternativa para as “Índias”, movidos pelo comércio de ouro, prata e especiarias. Estas explorações no Atlântico e Índico foram seguidas por países do norte da Europa, França, Inglaterra e Holanda, que exploraram as rotas comerciais portuguesas e espanholas até ao Oceano Pacífico, chegando à Austrália em 1606 e à Nova Zelândia em 1642.

Este período marca a passagem do feudalismo da Idade Média para a Idade Moderna, com a ascensão dos estados-nação europeus. Durante este processo, os europeus encontraram e documentaram povos e terras nunca antes vistas. A expansão européia criou impérios coloniais, com o contato entre o Velho e o Novo Mundo produzindo o “intercâmbio colombiano” (Columbian Exchange): a transferência de plantas, animais, alimentos e populações humanas, doenças transmissíveis e culturas entre os hemisfério ocidental e oriental, num dos mais significativos eventos globais da ecologia, agricultura e cultura da história.

Plantas domesticadas do Novo Mundo, em sentido horário: 1. Milhoe (Zea mays) 2. Tomate (Solanum lycopersicum) 3. Batata (Solanum tuberosum) 4. Baunilha (Vanilla) 5. Seringueira do Pará (Hevea brasiliensis) 6. Cacau (Theobroma cacao) 7. Tabaco (Nicotiana rustica).

Entre os famosos exploradores deste período, destacam-se Cristóvão Colombo, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, John Cabot, Yermak, Juan Ponce de León, Fernão de Magalhães, Willem Barents, Abel Tasman, Vicente Yáñez Pinzón e Willem Jansz.

1.1 Antecedentes
Os europeus tinham conhecimentos remotos sobre o continente Asiático, vindos de relatos muitas vezes obscurecidos por lendas, ainda dos tempos de Alexandre o Grande  de relatos árabes do tempo da ocupação cristã da Palestina e dos reinos cristãos do tempo das cruzadas. Pouco era conhecido além da Anatólia e do Mar Cáspio. O continente africano era conhecido parcialmente: não se conhecendo o seu limite a Sul, existindo apenas relatos de grandes reinos africanos além do Sahara. O conhecimento das costas africanas atlânticas era pouco e provinha de mapas antigos e de relatos do tempo distante em que os exploravam a Mauritânia. Do Mar Vermelho, sabia-se da sua existência e pouco mais, sendo que só com o desenvolvimento dos laços comerciais das repúblicas marítimas italianas, Gênova e Veneza principalmente, se começou a verdadeira exploração dessa zona.

1.2 Exploração marítima no Mediterrâneo
Do século VII ao século XV a República de Veneza e repúblicas marítimas vizinhas detiveram o monopólio do comércio europeu com o Oriente Médio. O comércio de seda e de especiarias (incensos, ervas, drogas, ópio) tornou estas cidades-estado do Mediterrâneo muito ricas.

As especiarias estavam entre os mais caros e procurados produtos da Idade Média: eram usadas na medicina, em rituais religiosos, como cosméticos e perfumaria, temperos e conservantes. Eram todas importadas da Ásia e da África. Comerciantes muçulmanos dominavam as rotas no Oceano Índico, indo às regiões de origem no Extremo Oriente e transportando-as para a Índia e daí para oeste. Por rotas terrestres, eram transportadas para as costas mediterrâneas. Mercadores venezianos faziam a distribuição pela Europa até a ascensão do Império Otomano, que viria a tomar Constantinopla em 1453, barrando aos europeus importantes rotas marítimas e terrestres, elevando o preço dos produtos para valores astronômicos.

Gênova e Veneza, antigas Repúblicas Marítimas italianas, dominaram as rotas comerciais do Mediterrâneo. O contato com navegadores árabes legou tecnologias importantíssimas que permitiriam aos navegadores portugueses e espanhóis navegar até o desconhecido ‘Novo Mundo’.

Forçados a reduzir as suas atividades no Mar Negro, os mercadores da República de Gênova voltaram-se para o comércio norte africano de trigo, azeite (valorizado também como fonte de energia) e na busca de prata e ouro. Os europeus tinham um déficit constante de metais preciosos, pois a moeda saía da Europa para pagar o comércio oriental de que agora estavam cortados. As minas européias estavam esgotadas e a falta de moeda levou ao desenvolvimento de um sistema bancário complexo para gerenciar os riscos envolvidos no comércio. Navegando entre o norte da África e os portos de Bruges (Flandres) e Inglaterra, genoveses e florentinos estabeleceram comunidades em Portugal, que se beneficiou da iniciativa empresarial e da experiência financeira destes.

Em 1297, com a Reconquista concluída, o rei de Portugal D. Dinis interessara-se pelo comércio externo, organizando a exportação para países europeus. Em 1317, faz um acordo com o navegador e mercador genovês Manuel Pessanha (Pesagno), nomeando-o primeiro almirante da frota real, com o objetivo de defender as costas do país contra ataques de piratas muçulmanos. Na segunda metade do século XIV, surtos de peste bubônica levaram a um grave despovoamento. Só o mar oferecia alternativas, com a maioria da população fixada nas zonas costeiras de pesca e comércio. Entre 1325-1357 D. Afonso IV de Portugal ordenou as primeiras explorações marítimas. Em 1341, as ilhas Canárias, já conhecidas dos genoveses, foram oficialmente descobertas sob o patrocínio do rei Português.

1.3 Primeiras expedições portuguesas do Atlântico (1419-1460)
Os portugueses foram os primeiros a se aventurarem pelo Atlântico. Enquanto a maior parte da Europa se encontrava, no século XV, dividida em várias pequenas regiões rivais entre si, Portugal já era um reino unificado desde o século XII, o que possibilitou seu crescimento e desenvolvimento.

Em 1415, Ceuta foi ocupada pelos portugueses, evento convencionado como o início da expansão portuguesa. O príncipe D. Henrique, que participou da conquista, tomou conhecimento das possibilidades de lucro das rotas trans-Saharianas. Durante séculos, rotas de escravos e do comércio de ouro controladas por muçulmanos do Norte da África ligavam a África Ocidental ao Mediterrâneo. D. Henrique propôs então saber até onde os territórios muçulmanos se estendiam, esperando ultrapassá-los e negociar diretamente por mar, encontrar aliados nas terras ao sul e sondar a possibilidade de chegar às Índias. Investiu seu patrimônio em viagens exploratórias na costa da Mauritânia, reunindo um grupo de comerciantes, armadores e interessados em novas rotas marítimas.

Infante Dom Henrique, a mais importante figura do início da era das descobertas, popularmente conhecido como Infante de Sagres ou O Navegador.

Em 1418 redescobriu-se a ilha do Porto Santo e mais tarde a ilha da Madeira. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias despertaram o interesse tanto dos Portugueses como dos Castelhanos; por serem vizinhos da costa africana, possuíam importância econômica e estratégica. Em 1427 é atingido o arquipélago dos Açores.

Desde 1422 navegações na costa africana lograram ultrapassar o Cabo Não, o limite sul considerado intransponível por europeus e árabes. Em 1434 foi contornado o temido Cabo Bojador. Em 1435, descobriu-se Angra de Ruivos e este chegou-se ao Rio de Ouro, no Saara Ocidental. Após a derrota portuguesa de Tânger em 1437, adiou-se o projeto de conquistar Marrocos. Em 1441, chegou-se ao Cabo Branco e a partir disso foram feitas incursões ao Rio do Ouro. A partir de então generalizou-se a convicção de que essa área da costa africana poderia sustentar uma atividade comercial.

Em 1453 Constantinopla é tomada pelos Otomanos, abalando as relações comerciais européias. Em 1455 é emitida a bula Romanus Pontifex pelo Papa Nicolau V reforçando a anterior Dum Diversas de 1452, declarando que as terras e mares descobertos além do Cabo Bojador pertenciam aos reis de Portugal, autorizando o comércio e as conquistas contra muçulmanos e pagãos, iniciando a política de mare clausum no Atlântico.

Em 1456 atingiu-se o arquipélago de Cabo Verde. Na década seguinte vários capitães a serviço de D. Henrique descobrem as restantes ilhas e segue-se o povoamento ainda no século XV. O Golfo da Guiné seria atingido nos anos 1460.

1.4 Explorações após o Infante D. Henrique (1460-1488)
Em 1460 atingiu-se Serra Leoa. Em novembro desse ano faleceu o infante D. Henrique. Em 1469 Afonso V, Rei de Portugal concedeu o monopólio do comércio no Golfo da Guiné ao mercador Fernão Gomes. Segundo João de Barros, estava ele obrigado a continuar as explorações, pois o comércio monopolista era garantido com a condição de que descobrisse terras.

Este avanço teria começado a partir de Serra Leoa, onde já haviam chegado Pêro de Sintra e Soeiro da Costa. Com a colaboração de navegadores como João de Santarém, Pedro Escobar, Lopo Gonçalves, Fernão do Pó e Pedro de Sintra, Fernão Gomes fez até mais do que o contratado: com o seu patrocínio, os portugueses chegaram ao Cabo de Santa Catarina, no Hemisfério Sul. João de Santarém e Pêro Escobar exploraram a costa setentrional do Golfo da Guiné, atingindo a “mina de ouro” de Sama (Sama Bay), a costa da Mina, a de Benin, a do Calabar e a do Gabão e as ilhas de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom. Quando as expedições chegaram a Elmina na Costa do Ouro em 1471, encontraram um florescente comércio local de ouro.

Mapa das explorações portuguesas na costa da África, das Ilhas Canárias ao Cabo da Boa Esperança.

Em 1474, D. Afonso V entregou a seu filho, futuro D. João II, a organização das explorações por terras africanas, que assim passaram da iniciativa privada para a coroa. Este fez o reconhecimento de toda a costa até à região do Padrão de Santo Agostinho. Em 1483, Diogo Cão chegou ao rio Zaire e dois anos depois até à Serra Parda. Em 1487, Bartolomeu Dias, comandando uma expedição com três caravelas, atingiu o Cabo da Boa Esperança. Estabelecia-se assim a ligação náutica entre o Atlântico e o Índico. O projeto do caminho marítimo para a Índia foi delineado por D. João II para reduzir custos no comércio com a Ásia e como tentativa de monopolizar o comércio das especiarias. D. João almejava o domínio das rotas comerciais e a expansão do reino de Portugal, que já se transformava em Império. Porém, o empreendimento não seria realizado durante o seu reinado, mas no de seu sucessor D. Manuel I, que iria designar Vasco da Gama para esta expedição, mantendo o plano original.

1.5 Colombo chega às “Indias Ocidentais” (1492)
O reino de Castela foi mais lento a começar a explorar o Atlântico. Só no final do século XV, após a unificação das coroas de Castela e Aragão, depois da Reconquista, que os espanhóis começaram a busca por novas rotas comerciais  e expansão. A coroa de Aragão foi uma potência marítima do Mediterrâneo, controlando territórios no leste da Espanha, sudoeste da França e ilhas principais como Maiorca, Sicília e Malta, o Reino de Nápoles e a Sardenha, em domínios que se estendiam até a Grécia. Em 1492, os reis católicos conquistaram o reino mouro de Granada e decidiram financiar a expedição do genovês Cristovão Colombo – que por duas vezes, em 1485 e 1488, se apresentara ao rei D. João II de Portugal, sem sucesso – “na esperança de desviar o comércio de Portugal com África e daí com o Oceano Índico, chegando à Ásia viajando para oeste.”

Navegando para a coroa espanhola, Colombo partiu de Palos de la Frontera em 3 de agosto de 1492, com três pequenas embarcações: a nau Santa Maria e as caravelas Niña e Pinta. A 12 de outubro de 1492, chegou às “Índias ocidentais”, um ilhéu das Bahamas a que deu o nome de São Salvador. Continuando a navegar acostou em Cuba e chegou à Hispaniola (Haiti e Rep. Dominicana). Supondo ter chegado à Índia deixou uma pequena colônia e regressou à Europa. Na segunda viagem em 1493, avistou as Antilhas e abordou a Martinica. Rumou depois para o norte e alcançou Porto Rico. Retornou a Hispaniola e dali navegou para o ocidente e chegou à Jamaica. Nessa viagem fundou Isabela, atual Santo Domingo, na República Dominicana, a primeira povoação europeia no continente americano.

Rota da primeira viagem de Cristóvão Colombo.

Os espanhóis ficaram inicialmente decepcionados com as descobertas: ao contrário de África ou da Ásia, as ilhas do Caribe pouco comércio permitiam. As ilhas tornaram-se foco de esforços de colonização. Mais tarde quando o interior do continente foi explorado é que que a Espanha encontraria a riqueza que tinha procurado: prata e ouro abundante.

Nas Américas, os espanhóis encontraram uma série de impérios tão grandes e populosos como os da Europa. No entanto, pequenos corpos dos conquistadores espanhóis, com grandes exércitos de ameríndios, conseguiram vencer estes estados. Os mais notáveis foram o império asteca no México (1521) conquistado por Hernán Cortés e o império inca no Peru (1532) conquistado por Francisco Pizarro. Uma vez a soberania espanhola estabelecida, a exploração centrou-se na extração e exportação de ouro e prata.

1.6 O Tratado de Tordesilhas (1494)

Depois da chegada às “Índias Ocidentais”, uma divisão da zona de influência tornou-se necessária para evitar conflitos entre espanhóis e portugueses, o que foi resolvido em 1494 com a assinatura do Tratado de Tordesilhas.

Após o regresso de Colombo, em 1493, os reis católicos tinham obtido do papa Alexandre VI a bula pontifícia Inter caetera afirmando que as terras a oeste e sul de um meridiano 100 léguas a oeste do Açores ou das Ilhas de Cabo Verde deveriam pertencer à Espanha e, mais tarde, incluindo todos territórios da Índia. Não mencionava Portugal, que não podia reivindicar terras recém-descobertas nem sequer a leste desta linha. O rei D. João II de Portugal não ficou satisfeito e negociou diretamente com o rei Fernando de Aragão e a rainha Isabel de Castela para mover esta linha para oeste, permitindo-lhe reivindicar as terras descobertas a leste do mesmo.

Folha de rosto do Tratado de Tordesilhas de 1494.

No Tratado de Tordesilhas de 1492 os portugueses recebiam todos os territórios fora da Europa a leste de um meridiano que corria 270 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, o que dava o controle sobre a África, Ásia e leste da América do Sul (Brasil). Aos espanhóis foram atribuídos todos os territórios a oeste dessa linha que se revelariam ser a parte ocidental do continente americano e as ilhas do Oceano Pacífico.

II. O Descobrimento do Brasil

A 22 de Abril de 1500 a Armada comandada por Pedro Álvares Cabral, rumando à Índia com o objetivo de efetivar a ligação comercial à costa do Malabar, após a viagem pioneira de Vasco da Gama, avistou terra no Atlântico Sul. O desembarque que se seguiu, naquela que seria inicialmente chamada de Terra de Vera Cruz, marcou o momento de descoberta oficial do que viria a ser o Brasil.

2.1 A armada
A armada de Pedro Álvares Cabral começou a ser preparada logo após o regresso de Vasco da Gama, tendo como objetivo firmar os interesses portugueses na Índia, recentemente alcançada. Foram reunidos um total de treze navios dos quais nove eram naus e três caravelas, contando com um navio de menor dimensão, para abastecimentos. Esta armada representava a maior força naval a partir de Portugal até então. Com exceção dos nomes de duas naus e de uma caravela, não se sabe como se chamavam os navios comandados por Cabral. Estima-se que a armada levasse mantimentos para cerca de dezoito meses.

Não se sabe o nome da nau capitânia, mas a nau sota-capitânia, capitaneada pelo vice-comandante da armada Sancho de Tovar, se chamava El Rei. A outra cujo nome se sabe é a Anunciada, comandada por Nuno Leitão da Cunha. Esta última pertencia a Dom Álvaro de Bragança e fora equipada com os recursos de banqueiros florentinos que investiam no comércio de especiarias. As cartas que eles trocaram com seus sócios e acionistas italianos preservaram o nome do navio.

Memória das Armadas que de Portugal passaram à Índia…, pormenor da nau de Pedro Álvares Cabral.

Conservou-se ainda o nome da caravela capitaneada por Pero de Ataíde, a São Pedro. A outra caravela, comandada por Bartolomeu Dias, teve o seu nome perdido. A armada era completada por uma naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos. Coube a ela retornar a Portugal com as notícias sobre a descoberta do Brasil.

Baseado em documento incompleto que localizou na Torre do Tombo, em Lisboa, Francisco Adolfo de Varnhagen identificou cinco das dez naus que compunham a frota cabralina. Seriam elas Santa Cruz, Vitória, Flor de la Mar, Espírito Santo e Espera. A fonte citada por Varnhagen nunca foi reencontrada, portanto a maioria dos historiadores prefere não adotar os nomes por ele listados. A armada, assim, continua quase anônima.

A viagem de Cabral de Lisboa a Calicute. Em vermelho, a ida e em azul, a volta.

Pouco antes da partida, o Rei mandou rezar uma missa, no Mosteiro de Belém, presidida pelo bispo de Ceuta, D. Diogo de Ortiz, que benzeu uma bandeira com as armas do Reino e entregou-a em mãos a Cabral, despedindo-se o rei do fidalgo e dos restantes capitães.

Vasco da Gama teria tecido considerações e recomendações para a longa viagem que se chegava: a coordenação entre os navios era crucial para que não se perdessem uns dos outros. Recomendou então ao capitão-mor disparar os canhões duas vezes e esperar pela mesma resposta de todos os outros navios antes de mudar o curso ou velocidade (método de contagem ainda atualmente utilizado em campo de batalha terrestre), dentre outros códigos de comunicação semelhantes.

2.2 Terra à vista!
A expedição de Cabral chegou, primeiramente, às Ilhas Canárias, depois foi para o Arquipélago de Cabo Verde, onde uma caravela sumiu no meio do mar. Seguiram uma rota sudoeste, cruzando a linha do Equador, como fizera Vasco da Gama.

Em 21 de abril, avista-se os primeiros sinais de terra firme deste a partida do Cabo Verde. No dia seguinte, a expedição ancora em um monte, ao qual deram o nome de Pascoal. Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias e seus homens descobriam o Brasil.

Caminha noticia em sua carta o “achamento” da terra que recebeu o nome de Vera Cruz:

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome  o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.

A Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha.

A carta relata também a nomeação do que viria a ser a cidade de Porto Seguro,  município situado no extremo sul da Bahia:

E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

III. Contato com os nativos – a narrativa de Pero Vaz de Caminha
No dia 24 de Abril, Andreza Balbino e Cabral receberam os nativos no seu navio.O grupo de índios reconheceu de imediato o ouro e a prata no navio — um fio de ouro de D. Pedro e um castiçal de prata — o que fez com que os portugueses inicialmente acreditassem que havia muito ouro naquela terra. A curiosidade tocou-lhes pelos objetos não reconhecidos – como umas contas de rosário, e para surpresa dos portugueses pelos objetos reconhecidos – os metais preciosos:

Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.

Entretanto, em sua carta, Caminha confessa que não sabia dizer se os índios diziam mesmo que ali havia ouro, ou se o desejo dos navegantes pelo metal era tanto que eles não conseguiram entender diferentemente:

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.

Os portugueses entravam, desta forma, pela primeira em contato com ameríndios. A região era habitada pela tribo dos Tupiniquins, pertencentes ao vasto grupo linguístico Tupi-Guarani, com os quais se realizaram as primeiras trocas comerciais.

3.1 Os “índios”
Caminha nos dá a descrição dos índios que subiram ao barco e de todos os outros que avistou nas terras recém descobertas pelos portugueses, dando detalhes de sua fisionomia e dos seus ornamentos:

[…] e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.

Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

Há outra descrição mais detalhada de nativos e seus ornamentos mais adiante na carta. Pero Vaz de Caminha repara num segundo tipo de adorno labial indígena, em forma de disco (que ele chama ‘espelho’).

Os adornos labiais que Caminha descreve são os tembetás. Ele descreve dois tipos: os que tem formato pontiagudo (à direita) e os que tem o formato ‘de espelho’ (à esquerda).

Na pintura, ele repara no padrão geométrico que para ele lembra um jogo de xadrez (ele refere-se a ‘escaque’, que é o nome das quadras do jogo de xadrez):

Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.

A pintura indígena também é descrita com fascínio na carta de Pero Vaz de Caminha. Ele identifica ao menos dois tipos de pintura: a de padrões geométricos (canto superior direito) feita com a tinta escura do genipapo (canto superior esquerdo) e a pintura vermelha geralmente feita no rosto (canto inferior direito) a partir do extrato do urucum (canto inferior esquerdo).

Outro choque para Vaz de Caminha foi ver as mulheres nativas totalmente nuas e, para espanto do português, sem pelos pubianos:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

Mas Caminha não abriu mão também de ser o primeiro a reparar na beleza nativa daqui, traçando um comparativo com as portuguesas:

E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.

Mais da pintura corporal e da nudez das mulheres Caminha descreve:

Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.

Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.

Diversas vezes ao longo da carta, Caminha menciona que os índios não são ‘fanados’, ou seja, que não são circuncidados.

Caminha faz também a primeira descrição de uma embarcação indígena, que ele chama ‘almadia’:

E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.

Destes outros índios, Caminha repara um novo padrão de pintura. Em vez de preto ou azulado (tinta extraída do jenipapo), estes índios estão pintados de vermelho (urucu):

Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.

Outro aspecto frequentemente mencionado por Caminha, com relação aos nativos, é a sua limpeza:

Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.

3.2 O comércio com os nativos
O choque cultural foi evidente. Os indígenas não reconheceram os animais que traziam os navegadores, à exceção de um papagaio que o capitão trazia consigo:

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.

Ofereceram-lhes comida e vinho, os quais os índios rejeitaram:

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.

Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.

Mais tarde, retornados os índios em terra, é narrada a primeira verdadeira transação comercial entre os navegadores portugueses e os nativos americanos. Ao contrário do que diz a mitologia popular, os índios não trocaram ouro por espelhos, e sim água potável e arcos por cascavel (guizos), manilha (um tipo de bracelete) e carapuças de linho:

Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.

Exemplos de produtos que podem ter sido trocados pelos indígenas: arcos, flechas, cerâmica, cestos, colares, maracás, cocares, frutas, peixes, frutos do mar, água potável.

Caminha relata também a primeira vez que os portugueses consomem frutos do mar nativos da América do Sul:

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.

E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia.

Outra coisa de que se alimentam os portugueses é o palmito:

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.

Alguns dos primeiros alimentos consumidos pelos portugueses no Brasil: o palmito, o peixe e o camarão.

O comércio entre portugueses e nativos é constante. Os produtos mais trocados são, da parte dos índios, arcos, flechas, cocares, colares, aves e provisões (comida e água) e da parte dos portugueses carapuças, guizos, braceletes, instrumentos de ferro e vinho:

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.

Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.

Os aspectos rudimentares da economia e da agricultura nativa são apontados por Caminha:

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.

Apesar dos esforços, os portugueses não encontram aqui qualquer metal precioso que desejavam encontrar. Nem prata, nem ouro, nem mesmo ferro:

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

3.3 Os índios descobrem os portugueses e seus costumes
Mais tarde, em uma ilha cujo nome não é mencionado na carta, os portugueses   “pescaram peixe miúdo, não muito” e então participaram da missa rezada pelo frei Henrique “em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali”. Missa essa que segundo o parecer de Caminha “foi ouvida por todos com muito prazer e devoção”. Após a missa houve uma pregação do frei. Tanto a missa quanto a pregação são acompanhadas por nativos, conforme menciona Caminha:

Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço.

A Primeira Missa no Brasil, quadro de Victor Meirelles.

Os portugueses tentam passar aos nativos um pouco de sua crença:

Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

Pela primeira vez, os nativos ouvem música dos recém-chegados, tocadas por um gaiteiro:

Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito.

Durante um dia de trabalho, os portugueses começam a lavar roupas e a trabalhar com carpintaria para confeccionar uma cruz e obter lenha. Durante este processo os índios ajudam com o carregamento de madeira, mas também se impressionam com a tecnologia européia dos instrumentos de ferro, dos quais não dispunham:

Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.

Outra missa é realizada pelo frei Henrique. Dessa vez diante da Cruz construída pelos portugueses e com a presença de dezenas de nativos:

Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.

Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.

Caminha parece realmente entusiasmado com a possibilidade de conversão dos nativos ao cristianismo e de sua plena integração à sociedade portuguesa, com direito a religião católica e fidelidade ao rei. O único obstáculo, assim pareceu a Caminha, era o fato de não entenderem ainda a língua portuguesa:

E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.

3.4 Navegadores e degredados
Parece explícito no texto que a cordialidade dos portugueses com os índios é uma medida sobretudo de segurança, para manter os índios “apacificados” e para facilitar o comércio na expectativa de encontrar alguma riqueza estimada pelos portugueses, como o ouro. A integração com os americanos parece um processo já conhecido pelos portugueses de suas navegações na África, um processo que busca facilitar a estadia, a obtenção de suprimentos e a segurança da tripulação. Segue mais alguma observação de Pero Vaz de Caminha:

Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.

Via de regra, a tripulação do navio não se arriscava a ir diretamente nos povoamentos indígenas, ficando esta tarefa a cabo dos degredados. Inúmeras vezes estes são mandados para dormir entre os índios, mas estes recusam e os enviam de volta. Provavelmente, uma medida de segurança e parte da servidão punitiva imposta aos degregados. Os mesmos são os primeiros a ver e descrever as habitações dos nativos:

E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.

Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem.

Caminha menciona também dois degredados que vieram com os navegadores, e que aqui poderiam ser deixados ou simplesmente trocados com os índios. Considerou-se também a hipótese de levar, à força se necessário, alguns nativos da América “de amostra” para o rei de Portugal:

E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.

Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.

E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.

E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.

Os degredados parecem ter um papel importante na missão, embora inferiorizados pelo seu status. Os degredados ficam para aprender a língua e transmitir a crença dos portugueses, de modo a facilitar as relações entre os nativos e os navegadores:

E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.

Ao que parece, alguns portugueses gostaram tanto da vida dos índios que acharam melhor ficar por aqui a voltar de navio para Portugal. Além dos degredados que ficariam mesmo contra a própria vontade, dois grumetes fugiram da tripulação antes desta partir:

Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.

A Coroa portuguesa foi informada do descobrimento por intermédio de Gaspar de Lemos, mas a noticia apenas foi divulgada quando do regresso dos primeiros navios da armada de Pedro Álvares Cabral, em meados de 1501. Mantinham-se, no entanto, dúvidas sobre a natureza da terra recém-descoberta, se de uma ilha ou de terra firme se tratava, e acerca da sua dimensão, apenas esclarecidas pelas viagens de exploração que se sucederam nos anos seguintes, das quais a primeira, sob o comando de Gonçalo Coelho, partiu em Maio de 1501.

OUTRAS PARTES DA SÉRIE:

FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

  • Arnold, David. The Age of Discovery, 1400-1600.
  • Jensen, De Lamar. Renaissance Europe 2nd ed.
  • Diffie, Bailey. Foundations of the Portuguese Empire, 1415-1580.
  • M. D. D. Newitt. A history of Portuguese overseas expansion, 1400-1668.
  • Butel, Paul. The Atlantic.
  • Semedo, J. de Matos. O Contrato de Fernão Gomes.
  • Frances Gardiner Davenport. European Treaties Bearing on the History of the United States and Its Dependencies to 1648.
  • Crow, John A. The Epic of Latin America.
  • Arciniegas, Germán. Amerigo and the New World: The Life & Times of Amerigo Vespucci. Traduzido por Harriet de Onís.
  • Zweig, Stefan. Conqueror of the Seas – The Story of Magellan.
  • Fernandez-Armesto, Felipe. Pathfinders: A Global History of Exploration.
  • Grunberg, Bernard. La folle aventure d’Hernan Cortés, in L’Histoire n°322.
  • Restall, Matthew. Seven Myths of the Spanish Conquest.
  • Crosby, Alfred W., Jr. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492.
  • Fernández Álvarez, Manuel. Felipe II y su tiempo.
  • Boxer, Charles Ralph. O império marítimo português, 1415-1825.
  • Braudel, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII.
  • Cipolla, Carlo. European Culture and Overseas Expansion.
  • Jensen, De Lamar. Renaissance Europe: age of recovery and reconciliation.
  • Carmen Bernand, Cristina Murachco. História do Novo Mundo, V.1.
  • Parry, J. H. The Discovery of the Sea.
  • Caminha, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel.