Texto de Carlos Alberto Montaner publicado originalmente na revista Ilustración Liberal. Traduzido e adaptado para o português do Brasil por Renan Felipe dos Santos. Para ler o artigo original, em espanhol, clique aqui.
Em 1556, o poderoso imperador Carlos V decidiu abdicar e retirar-se para viver no mosteiro de Yuste em Extremadura, Espanha. Cansado das guerras constantes, deprimido pela morte de sua esposa, Isabel de Portugal, e sua mãe, Joana a Louca, e atormentado pela dor que leva a gota, distúrbio metabólico, tornar-se uma dor terrível , geralmente nas articulações, de preferência nos dedos dos pés, condição esta chamada podraga (gota, em espanhol).
Carlos V quer simplesmente escapar da morte e da dor.
Mas uma vez instalados em sua nova e austera residência, razoavelmente confortável para os padrões da época, Carlos V da Alemanha, e Primeiro de Espanha, como eles preferem chamá-lo, guiado pela ignorância, toma duas decisões fatais. Bebedor de cerveja, faz semear cevada enquanto um par de mestres cervejeiros que tinha trazido da Alemanha istalam um alambique para destilar. Os médicos que o acompanham intuem, com certa razão, que alguma relação tem a gota com os rins, e sabem que a cerveja estimula a vontade de urinar, assim que aprovam com entusiasmo a afeição do ex-imperador por esta forma refrescante de álcool. Ninguém sabia então que a bebida, rica em purinas, aumenta os níveis de ácido úrico dos portadores da gota, de modo que o pobre Carlos V aumentou o problema com todos os jarro de cerveja ingeridos.
A segunda decisão errada tinha a ver com um critério estético. Carlos V construiu uma piscina para olhar pela janela e, talvez, dar um mergulho nos dias de calor intenso. Pensava que estes banhos podiam aliviar a dor da gota. Talvez, mas a água parada atrai mosquitos. Um mosquito transmitiu-lhe a febre amarela e o pobre homem morreu em meio aos tremores e dores de todos os tipos que causam malária.
Qual é o propósito de começar a considerar um desenvolvimento com esta peça curiosa da história? Simples: para mostrar que a ignorância, escoltada por percepções distorcidas em geral leva a decisões erradas e fatais, mesmo pelas pessoas mais poderosas.
Primeira mentira: a riqueza das nações poderosas foi o resultado da pilhagem do mais fraco
Não é verdade. Espanha, Portugal e Turquia foram três dos maiores impérios da terra e não começaram realmente a prosperar até que se livraram de suas conquistas. Estabelecer e defender um império normalmente custa muito mais do que eles costumam produzir em riqueza.
Lembro que no início dos anos noventa do século passado, após a demolição do Muro de Berlim, um slogan entrou em voga em Moscou: “A Rússia deve ser libertada do peso da União Soviética.” Os russos finalmente perceberam que o custo para manter girando em torno de seu país uma série de satélites, o que incluia colônias políticas caras e distantes no Terceiro Mundo, como Cuba ou Etiópia, em vão sangrando o Tesouro Nacional.
Países Baixos e a Suécia nunca foram mais ricos do que quando dissolveram seus impérios. A pequena Suíça nunca teve um império é uma das nações mais prósperas do planeta. A riqueza da França não se derivava do espólio de suas colônias, senão do comércio, como sucedeu posteriormente com os Estados Unidos.
É muito mais o que a Inglaterra plantou em suas colônias do que colheu delas, como pode ser visto nos EUA, Canadá, Austrália, Irlanda ou Nova Zelândia. A força econômica que vemos em um país como a Índia, antiga colônia britânica, deve-se à marca da civilização na Inglaterra e não às antigas tradições hindus, completamente longe da mentalidade competitiva do capitalismo moderno.
É verdade que as nações imperiais obrigavam suas colônias a consumir produtos gerados pela metrópole, dentro da mentalidade mercantilista da época, mas Adam Smith, a fins do século XVIII, advertiu que esta era uma medida mutuamente empobrecedora. Servia para enriquecer a certos cortesãos próximos à Coroa, mas não favorecia ao conjunto da sociedade.
Este foi um dos cavalos de batalha do pensamento e das revoluções liberais: abrir-se ao comércio internacional e à concorrência.
Segunda mentira: as nações poderosas criam formas de comércio e produção que condenam à miséria ou à mediocridade aos povos menos desenvolvidos
Não é verdade. Ninguém impediu o Taiwan de converter-se em um país de Primeiro Mundo especializado em bens de alta tecnologia. Nenhuma nação gananciosa tratou de evitar que a Coréia do Sul inundasse o mundo com carros e eletrodomésticos. Tampouco tentam que o Brasil não produza e venda bons aviões, ainda que seja um Estado notavelmente protecionista, ou que o México exporte cimento, móveis ou petróleo aos Estados Unidos.
A Teoria da Dependência, que vez ou outra mostra a cabeça, ainda que disfarçada de nacionalismo patriótico, é um total disparate.
Se amanhã um laboratório argentino desenvolve uma vacina contra o câncer ou uma empresa chilena de informática cria um buscador mais eficiente que o Google, imporão seus produtos no mercado internacional se contam com o talento para comercializá-lo. Pelo contrário: vez ou outra os órgãos financeiros internacionais resgatam os países pobres quando estão em apuros. Num mundo interdependente, a nenhuma nação interessa a ruína do vizinho.
Terceira mentira: o Estado deve ditar as linhas mestras do desenvolvimento porque o mercado aberto conduz à desordem
Não é verdade. O Estado não deve freiar ou limitar a criatividade da sociedade impondo-lhe uma planificação ordenada. Em grande medida, o desenvolvimento é produto dos avanços tecnológicos, e estes espasmos criativos se dão de maneira espontânea e imprevista. No século XVIII, a uns técnicos desconhecidos lhes ocurreu colocar trilhos nas minas para extrair os minerais em vagões de metal. Quando se aperfeçoou a máquina à vapor, outros engenhosos mineiros substituíram as mulas por locomotoras. Sem avisá-los, haviam inventado o trem.
A fins do século XIX, o senhor Edison inventou a lâmpada incandescente e criou as redes e a empresa para distribuir a eletricidade. Ao telefone, à aviação, ao rádio, à televisão, ocorreu o mesmo. Nada foi planejado pelo Estado. Mesmo a internet, que surgiu como um projeto do Pentágono para comunicar os postos de comando em caso de guerra, só se explica seu fenomenal desenvolvimento porque a iniciativa privada lhe tirou do berço e a faz crescer.
Esta não é a função do Estado. Não pode fazê-lo. Não sabe fazê-lo. Por isto o mundo socialista, dirigido pelo Estado, foi praticamente estéril no terreno da criação.
Da faísca genial surge a invenção; depois da invenção aparece a empresa; depois dela, a concorrência e a atividade frenética que transformam o panorama econômico. Nada disto pode ser decidido por uns funcionários sobrecarregados que só podemn planificar sobre a realidade existente –como se vivessemos em uma dimensão estática–, mas que não podem ver o futuro… que já está cozinhando nos laboratórios ou na imaginação de certas pessoas impetuosas e criativas.
Ante esta impossibilidade de prever o futuro, o que deve fazer o Estado é criar e tutelar as condições para que a sociedade civil possa desenvolver-se e criar riqueza com a menor quantidade possível de limitações.
Não é falso que cada invenção também destrói empresas e capital acumulado, como advertiu Schumpeter, mas o dano de tratar de freiar a imaginação e a espontaneidade é muito maior.
Planificar o futuro coletivo e decidir arbitrariamente o que devemos produzir ou consumir é uma maneira lamentável de empobrecer-nos.
Quarta mentira: a qualidade de um Estado se mede pelo nível de gasto social e a solidariedade que ele demonstra
Não é verdade. Um Estado ideal é aquele que não requer gasto social porque todas as pessoas encontram a maneira de ganhar a vida decentemente por seu próprio esforço.
Sabemos que isto é impossível, dado que sempre há uma porcentagem de pessoas incapacitadas por diversas causas; mas quanto menos gasto social se necessita, maior será a qualidade de um Estado e mais clara será a demonstração de que esta sociedade criou um tecido empresarial vasto e competitivo, no qual todas as pessoas encontram seu espaço.
Quinta mentira: uma das funções principais do Estado é redistribuir a riqueza criada para evitar ou limitar as desigualdades
Não é verdade. Ou não deveria ser. A desigualdade é uma das consequências não buscadas das sociedades economicamente livres.
Onde se pode criar riquezas, surgem desigualdades.
É verdade que os gerentes e executivos das grandes empresas (especialmente nas multinacionais) recebem salários e benefícios que às vezes somam até cinquenta ou cem vezes o salário médio dos trabalhadores destas companhias, mas também é verdade que neste tipo de empresa os salários e os benefícios (seguros médicos, fundos de pensão, bolsas de estudo, férias pagas, etc.) são mais altos que a média. Se os acionistas de uma empresa creem que a remuneração de seus executivos deve ser milionária, é uma decisão que só compete a eles, da mesma maneira que são os donos dos times de futebol ou de beisebol os que devem decidir quanto pagam a seus atletas.
Por outro lado, não se deve esquecer que uma das características do mundo moderno desenvolvido é que os modos de vida das classes médias não diferem muito dos das classes endinheiradas.
A distância real entre a posse de um Rolex e um Mercedes Benz, por uma parte, e um Citizen e um Chevrolet, pela outra, é, fundamentalmente, uma questão de status. Uma pessoa muito rica pode comprar um quadro do Picasso num leilão e colocá-lo no seu avião privado. Um empregado médio, por sua vez, terá de conformar-se com uma cópia do pintor espanhol e voar como passageiro num avião comercial, mas estas diferenças no comportamento social são totalmente adjetivas.
Não cabe ao Estado decidir quais posses ou condutas legais são admissíveis ou censuráveis. Cada ser humano é diferente e tem suas próprias urgências psicológicas e suas próprias necessidades materiais.
Nas nações desenvolvidas o punhado de ricos e as imensas classes médias comerão os mesmos alimentos, se tratarão nas mesmas clínicas, tomarão medicamentos similares, se divertirão de igual maneira e terão à mão as mesmas informações. Não há nenhum estudo que indique que os ricos vivam mais, ou sejam mais saudáveis e felizes que os membros dos setores sociais médios. É verdade que as rendas são desiguais, mas este dado não é tão importante, enquanto que dedicar-se a corrigir estes desníveis em um tom acusador o que provoca e fomenta é uma danosa luta de classes. Por outra parte, a evidência indica que os grandes capitalistas, enquanto acumulam suas fortunas, criam riquezas que beneficiam a milhões de pessoas.
Os exemplos de Bill Gates e Warren Buffet são claríssimos. Estão entre as pessoas mais ricas do planeta, mas o capital que acumularam (e voluntariamente dedicaram a ajudar os necessitados) não empobreceu ninguém. Pelo contrário, remuneram muito bem a seus trabalhadores e enriqueceram milhões de pessoas em meio à venda de ações e, no caso de Buffet, desencalhando empresas.
A riqueza cresce por meio do trabalho e do comércio. Não é uma soma estática e limitada.
Sexta mentira: os países com menos desigualdades são aqueles em que existe uma maior pressão fiscal
Não é verdade. Podem coexistir ambos os fenômenos, mas não é a a pressão fiscal a causa de uma menor desigualdade, e sim a qualidade do tecido produtivo e do volume de riqueza que a sociedade pode criar.
É nas nações que tem um aparelho produtivo variado e com grande valor agregado, nas nações onde as empresas competem entre si e disputam a mão-de-obra qualificada, onda há uma melhor distribuição de rendas.
Num país como o Brasil, por exemplo, onde há desníveis sociais enormes, isto não sucede com os empregados da fábrica de aviões Embraer ou com os trabalhadores da Petrobrás, porque o valor que agregam à produção determina que seus salários sejam muito mais altos que os que recebem os colhedores de café ou engraxates. Para poder pagar vinte e cinco dólares por hora a um empregado, o bem que este produz – ou o serviço que presta – tem que valê-los num mercado competitivo.
Sétima mentira: o Estado deve determinar os salários e os preços para evitar as injustiças
Não é verdade. Os funcionários públicos não têm nenhuma maneira racional para determinar o que é um salário justo. A definição de salários justos como “a quantidade necessária para uma vida decente” é a expressão lírica de um nobre desejo, mais do que o produto de uma realidade econômica. A única maneira de ter altos salários para responder à economia real passa por dispor de um tecido empresarial denso e competitivo que tenha pleno emprego, para que os empresários tenham que brigar pelos melhores trabalhadores e compensá-los devidamente para mantê-los.
Os empregados não ganharão mais pela bondade dos funcionários ou pela fúria dos sindicatos, mas pela concorrência e por agregar valor à produção. Se o Estado, encorajado pelos sindicatos, tornar os salários e os benefícios excessivos, acabará provocando o desemprego, a fuga de capitais, desinvestimento e destruição de empresas. Nem tem sentido esperar por uma atitude benevolente e generosa dos empresários. A tendência da maioria dos empregadores é pagar tão pouco quanto possível para os seus trabalhadores. Não se esqueça que a escravidão existiu até muito recentemente (eu sabia de pessoas cubanas, na minha infância, que nasceram escravas), e foram poucos os empresários avessos ao que chamava-se pelo eufemismo de “a instituição peculiar”.
Oitava mentira: a educação vai nos tirar da miséria
Não é verdade. A educação é apenas um componente do desenvolvimento e da prosperidade. É muito importante, mas é de pouca utilidade a menos que se tenha uma sociedade hospitaleira com a capacidade de criar riqueza, dotada com as instituições adequadas para isso, tanto no campo legal como no campo financeiro.
Os países europeus do bloco socialista foram, provavelmente, mais bem educados do que os EUA ou o Canadá, se esse conhecimento fosse julgado por meio de seus bacharéis ou graduados. Cuba, cujo governo persegue com gana aos empresários, tem quase um milhão de graduados universitários, mas muitos deles preferem dirigir um táxi ou vender pizzas porque eles recebem uma remuneração superior a essas atividades do que em suas profissões.
A coisa maravilhosa da história da Microsoft, Apple e Facebook não é que quatro rapazes em uma garagem podem construir um império econômico em um curto espaço de tempo, mas que a sociedade em que vivem é tão porosa, tão flexível, e com uma rede de instituições jurídicas e financeiras tão notável, que torna possível o surgimento destes milagres empresariais.
Mais impressionante do que o talento desses jovens artistas é o capital intangível, com que contavam para realizar seus projetos.
Nona mentira: o livre comércio nos tirará da miséria
Não é verdade. Ao livre comércio acontece o mesmo que com a educação. É muito importante, pois sem ele o desenvolvimento é impossível, ou pelo menos muito difícil, mas tem que haver com que negociar.
A chave está na oferta.
Se continuarmos a vender café, açúcar, leite, cacau e banana, vamos nos beneficiar somente quando tais produtos subirem de preço no mercado por um aumento inesperado na demanda. É desanimador saber que só a Nestlé, após processar e embalar convenientemente estes mesmos produtos , vende mais que todos os países centro-americanos sem um acordo de livre comércio que abranja as suas atividades.
Sociedades pouco produtivas não podem utilizar o comércio como as que são cheias de criatividade. Sempre se beneficiarão, mas não da mesma maneira e com igual intensidade.
Hoje, os centro-americanos e dominicanos estão frustrados porque o Acordo de Livre Comércio com os Estados Unidos não alterou significativamente suas vidas, mas não costumam fazer a pergunta fundamental: o que eles têm para oferecer aos 300 milhões de consumidores norte-americanos? Onde estão as empresas inovadoras adequadas para servir a esse mercado, como fazem os chineses e já começam a fazer os indianos, ou como fazem pequenos países transbordando criatividade empresarial, incluindo Israel, Dinamarca, Suíça ou a Holanda?
Décima mentira: a ajuda internacional nos tirará da miséria
Não é verdade. Nenhum país pode nos resgatar. Eles podem aliviar-nos em uma situação econômica ruim, e freqüentemente o fazem, geralmente sem muito entusiasmo, mas ninguém pode nos salvar dos nossos próprios demônios.
Após o terremoto que destruiu metade no Haiti soube-se neste pequeno desastre caribenho operam mais ONGs que em qualquer outro lugar do planeta. E tudo é quase inútil.
Não é verdade. Nenhum país pode nos resgatar. Eles podem aliviar-nos em uma situação econômica ruim, e freqüentemente o fazem, geralmente sem muito entusiasmo, mas ninguém pode nos salvar dos nossos próprios demônios. Após o terremoto que destruiu metade no Haiti soube-se neste pequeno desastre caribenho operam mais ONGs pequenos do Caribe operar mais em qualquer outro lugar do planeta. E tudo o que é quase inútil. No entanto, outras zonas desesperadas do mundo, como a Coréia do Sul nos anos cinquenta ou Cingapura nos anos sessenta fizeram as coisas de forma diferente e foram colocadas no pelotão avançado no mundo.
Conclusão
Definitivamente, o caminho do desenvolvimento e da prosperidade começa por banir a infinita quantidade de mentiras e erros que circulam em nossa sociedade e nos precipitam em direção ao desastre.
Termino por onde comecei. Conta-se que enquanto Carlos V agonizava de febre amarela, que produz muita sede, pedia e lhe davam cerveja para aliviá-lo. Isto incrementava a dor da gota. Contam que morreu gritando.
Dando continuidade à nossa série A Conquista do Brasil. Como já abordamos a situação dos nativos americanos no artigo anterior, o artigo de hoje abordará o período das grandes navegações, a era dos descobrimentos, a chegada dos portugueses na costa brasileira e finalmente seu primeiro contato com os nativos.
I. A Era dos Descobrimentos
Era dos descobrimentos (ou Grandes Navegações) é o período entre o século XV e o início do século XVII, durante o qual os europeus exploraram o globo buscando novas rotas comerciais. É marcada pelas explorações marítimas realizadas por portugueses e espanhóis entre os séculos XV e XVI, que estabeleceram relações com África, Américas e Ásia, em busca de uma rota alternativa para as “Índias”, movidos pelo comércio de ouro, prata e especiarias. Estas explorações no Atlântico e Índico foram seguidas por países do norte da Europa, França, Inglaterra e Holanda, que exploraram as rotas comerciais portuguesas e espanholas até ao Oceano Pacífico, chegando à Austrália em 1606 e à Nova Zelândia em 1642.
Este período marca a passagem do feudalismo da Idade Média para a Idade Moderna, com a ascensão dos estados-nação europeus. Durante este processo, os europeus encontraram e documentaram povos e terras nunca antes vistas. A expansão européia criou impérios coloniais, com o contato entre o Velho e o Novo Mundo produzindo o “intercâmbio colombiano” (Columbian Exchange): a transferência de plantas, animais, alimentos e populações humanas, doenças transmissíveis e culturas entre os hemisfério ocidental e oriental, num dos mais significativos eventos globais da ecologia, agricultura e cultura da história.
Entre os famosos exploradores deste período, destacam-se Cristóvão Colombo, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, John Cabot, Yermak, Juan Ponce de León, Fernão de Magalhães, Willem Barents, Abel Tasman, Vicente Yáñez Pinzón e Willem Jansz.
1.1 Antecedentes Os europeus tinham conhecimentos remotos sobre o continente Asiático, vindos de relatos muitas vezes obscurecidos por lendas, ainda dos tempos de Alexandre o Grande de relatos árabes do tempo da ocupação cristã da Palestina e dos reinos cristãos do tempo das cruzadas. Pouco era conhecido além da Anatólia e do Mar Cáspio. O continente africano era conhecido parcialmente: não se conhecendo o seu limite a Sul, existindo apenas relatos de grandes reinos africanos além do Sahara. O conhecimento das costas africanas atlânticas era pouco e provinha de mapas antigos e de relatos do tempo distante em que os exploravam a Mauritânia. Do Mar Vermelho, sabia-se da sua existência e pouco mais, sendo que só com o desenvolvimento dos laços comerciais das repúblicas marítimas italianas, Gênova e Veneza principalmente, se começou a verdadeira exploração dessa zona.
1.2 Exploração marítima no Mediterrâneo Do século VII ao século XV a República de Veneza e repúblicas marítimas vizinhas detiveram o monopólio do comércio europeu com o Oriente Médio. O comércio de seda e de especiarias (incensos, ervas, drogas, ópio) tornou estas cidades-estado do Mediterrâneo muito ricas.
As especiarias estavam entre os mais caros e procurados produtos da Idade Média: eram usadas na medicina, em rituais religiosos, como cosméticos e perfumaria, temperos e conservantes. Eram todas importadas da Ásia e da África. Comerciantes muçulmanos dominavam as rotas no Oceano Índico, indo às regiões de origem no Extremo Oriente e transportando-as para a Índia e daí para oeste. Por rotas terrestres, eram transportadas para as costas mediterrâneas. Mercadores venezianos faziam a distribuição pela Europa até a ascensão do Império Otomano, que viria a tomar Constantinopla em 1453, barrando aos europeus importantes rotas marítimas e terrestres, elevando o preço dos produtos para valores astronômicos.
Forçados a reduzir as suas atividades no Mar Negro, os mercadores da República de Gênova voltaram-se para o comércio norte africano de trigo, azeite (valorizado também como fonte de energia) e na busca de prata e ouro. Os europeus tinham um déficit constante de metais preciosos, pois a moeda saía da Europa para pagar o comércio oriental de que agora estavam cortados. As minas européias estavam esgotadas e a falta de moeda levou ao desenvolvimento de um sistema bancário complexo para gerenciar os riscos envolvidos no comércio. Navegando entre o norte da África e os portos de Bruges (Flandres) e Inglaterra, genoveses e florentinos estabeleceram comunidades em Portugal, que se beneficiou da iniciativa empresarial e da experiência financeira destes.
Em 1297, com a Reconquista concluída, o rei de Portugal D. Dinis interessara-se pelo comércio externo, organizando a exportação para países europeus. Em 1317, faz um acordo com o navegador e mercador genovês Manuel Pessanha (Pesagno), nomeando-o primeiro almirante da frota real, com o objetivo de defender as costas do país contra ataques de piratas muçulmanos. Na segunda metade do século XIV, surtos de peste bubônica levaram a um grave despovoamento. Só o mar oferecia alternativas, com a maioria da população fixada nas zonas costeiras de pesca e comércio. Entre 1325-1357 D. Afonso IV de Portugal ordenou as primeiras explorações marítimas. Em 1341, as ilhas Canárias, já conhecidas dos genoveses, foram oficialmente descobertas sob o patrocínio do rei Português.
1.3 Primeiras expedições portuguesas do Atlântico (1419-1460) Os portugueses foram os primeiros a se aventurarem pelo Atlântico. Enquanto a maior parte da Europa se encontrava, no século XV, dividida em várias pequenas regiões rivais entre si, Portugal já era um reino unificado desde o século XII, o que possibilitou seu crescimento e desenvolvimento.
Em 1415, Ceuta foi ocupada pelos portugueses, evento convencionado como o início da expansão portuguesa. O príncipe D. Henrique, que participou da conquista, tomou conhecimento das possibilidades de lucro das rotas trans-Saharianas. Durante séculos, rotas de escravos e do comércio de ouro controladas por muçulmanos do Norte da África ligavam a África Ocidental ao Mediterrâneo. D. Henrique propôs então saber até onde os territórios muçulmanos se estendiam, esperando ultrapassá-los e negociar diretamente por mar, encontrar aliados nas terras ao sul e sondar a possibilidade de chegar às Índias. Investiu seu patrimônio em viagens exploratórias na costa da Mauritânia, reunindo um grupo de comerciantes, armadores e interessados em novas rotas marítimas.
Em 1418 redescobriu-se a ilha do Porto Santo e mais tarde a ilha da Madeira. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias despertaram o interesse tanto dos Portugueses como dos Castelhanos; por serem vizinhos da costa africana, possuíam importância econômica e estratégica. Em 1427 é atingido o arquipélago dos Açores.
Desde 1422 navegações na costa africana lograram ultrapassar o Cabo Não, o limite sul considerado intransponível por europeus e árabes. Em 1434 foi contornado o temido Cabo Bojador. Em 1435, descobriu-se Angra de Ruivos e este chegou-se ao Rio de Ouro, no Saara Ocidental. Após a derrota portuguesa de Tânger em 1437, adiou-se o projeto de conquistar Marrocos. Em 1441, chegou-se ao Cabo Branco e a partir disso foram feitas incursões ao Rio do Ouro. A partir de então generalizou-se a convicção de que essa área da costa africana poderia sustentar uma atividade comercial.
Em 1453 Constantinopla é tomada pelos Otomanos, abalando as relações comerciais européias. Em 1455 é emitida a bula Romanus Pontifex pelo Papa Nicolau V reforçando a anterior Dum Diversas de 1452, declarando que as terras e mares descobertos além do Cabo Bojador pertenciam aos reis de Portugal, autorizando o comércio e as conquistas contra muçulmanos e pagãos, iniciando a política de mare clausum no Atlântico.
Em 1456 atingiu-se o arquipélago de Cabo Verde. Na década seguinte vários capitães a serviço de D. Henrique descobrem as restantes ilhas e segue-se o povoamento ainda no século XV. O Golfo da Guiné seria atingido nos anos 1460.
1.4 Explorações após o Infante D. Henrique (1460-1488) Em 1460 atingiu-se Serra Leoa. Em novembro desse ano faleceu o infante D. Henrique. Em 1469 Afonso V, Rei de Portugal concedeu o monopólio do comércio no Golfo da Guiné ao mercador Fernão Gomes. Segundo João de Barros, estava ele obrigado a continuar as explorações, pois o comércio monopolista era garantido com a condição de que descobrisse terras.
Este avanço teria começado a partir de Serra Leoa, onde já haviam chegado Pêro de Sintra e Soeiro da Costa. Com a colaboração de navegadores como João de Santarém, Pedro Escobar, Lopo Gonçalves, Fernão do Pó e Pedro de Sintra, Fernão Gomes fez até mais do que o contratado: com o seu patrocínio, os portugueses chegaram ao Cabo de Santa Catarina, no Hemisfério Sul. João de Santarém e Pêro Escobar exploraram a costa setentrional do Golfo da Guiné, atingindo a “mina de ouro” de Sama (Sama Bay), a costa da Mina, a de Benin, a do Calabar e a do Gabão e as ilhas de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom. Quando as expedições chegaram a Elmina na Costa do Ouro em 1471, encontraram um florescente comércio local de ouro.
Em 1474, D. Afonso V entregou a seu filho, futuro D. João II, a organização das explorações por terras africanas, que assim passaram da iniciativa privada para a coroa. Este fez o reconhecimento de toda a costa até à região do Padrão de Santo Agostinho. Em 1483, Diogo Cão chegou ao rio Zaire e dois anos depois até à Serra Parda. Em 1487, Bartolomeu Dias, comandando uma expedição com três caravelas, atingiu o Cabo da Boa Esperança. Estabelecia-se assim a ligação náutica entre o Atlântico e o Índico. O projeto do caminho marítimo para a Índia foi delineado por D. João II para reduzir custos no comércio com a Ásia e como tentativa de monopolizar o comércio das especiarias. D. João almejava o domínio das rotas comerciais e a expansão do reino de Portugal, que já se transformava em Império. Porém, o empreendimento não seria realizado durante o seu reinado, mas no de seu sucessor D. Manuel I, que iria designar Vasco da Gama para esta expedição, mantendo o plano original.
1.5 Colombo chega às “Indias Ocidentais” (1492) O reino de Castela foi mais lento a começar a explorar o Atlântico. Só no final do século XV, após a unificação das coroas de Castela e Aragão, depois da Reconquista, que os espanhóis começaram a busca por novas rotas comerciais e expansão. A coroa de Aragão foi uma potência marítima do Mediterrâneo, controlando territórios no leste da Espanha, sudoeste da França e ilhas principais como Maiorca, Sicília e Malta, o Reino de Nápoles e a Sardenha, em domínios que se estendiam até a Grécia. Em 1492, os reis católicos conquistaram o reino mouro de Granada e decidiram financiar a expedição do genovês Cristovão Colombo – que por duas vezes, em 1485 e 1488, se apresentara ao rei D. João II de Portugal, sem sucesso – “na esperança de desviar o comércio de Portugal com África e daí com o Oceano Índico, chegando à Ásia viajando para oeste.”
Navegando para a coroa espanhola, Colombo partiu de Palos de la Frontera em 3 de agosto de 1492, com três pequenas embarcações: a nau Santa Maria e as caravelas Niña e Pinta. A 12 de outubro de 1492, chegou às “Índias ocidentais”, um ilhéu das Bahamas a que deu o nome de São Salvador. Continuando a navegar acostou em Cuba e chegou à Hispaniola (Haiti e Rep. Dominicana). Supondo ter chegado à Índia deixou uma pequena colônia e regressou à Europa. Na segunda viagem em 1493, avistou as Antilhas e abordou a Martinica. Rumou depois para o norte e alcançou Porto Rico. Retornou a Hispaniola e dali navegou para o ocidente e chegou à Jamaica. Nessa viagem fundou Isabela, atual Santo Domingo, na República Dominicana, a primeira povoação europeia no continente americano.
Os espanhóis ficaram inicialmente decepcionados com as descobertas: ao contrário de África ou da Ásia, as ilhas do Caribe pouco comércio permitiam. As ilhas tornaram-se foco de esforços de colonização. Mais tarde quando o interior do continente foi explorado é que que a Espanha encontraria a riqueza que tinha procurado: prata e ouro abundante.
Nas Américas, os espanhóis encontraram uma série de impérios tão grandes e populosos como os da Europa. No entanto, pequenos corpos dos conquistadores espanhóis, com grandes exércitos de ameríndios, conseguiram vencer estes estados. Os mais notáveis foram o império asteca no México (1521) conquistado por Hernán Cortés e o império inca no Peru (1532) conquistado por Francisco Pizarro. Uma vez a soberania espanhola estabelecida, a exploração centrou-se na extração e exportação de ouro e prata.
1.6 O Tratado de Tordesilhas (1494)
Depois da chegada às “Índias Ocidentais”, uma divisão da zona de influência tornou-se necessária para evitar conflitos entre espanhóis e portugueses, o que foi resolvido em 1494 com a assinatura do Tratado de Tordesilhas.
Após o regresso de Colombo, em 1493, os reis católicos tinham obtido do papa Alexandre VI a bula pontifícia Inter caetera afirmando que as terras a oeste e sul de um meridiano 100 léguas a oeste do Açores ou das Ilhas de Cabo Verde deveriam pertencer à Espanha e, mais tarde, incluindo todos territórios da Índia. Não mencionava Portugal, que não podia reivindicar terras recém-descobertas nem sequer a leste desta linha. O rei D. João II de Portugal não ficou satisfeito e negociou diretamente com o rei Fernando de Aragão e a rainha Isabel de Castela para mover esta linha para oeste, permitindo-lhe reivindicar as terras descobertas a leste do mesmo.
No Tratado de Tordesilhas de 1492 os portugueses recebiam todos os territórios fora da Europa a leste de um meridiano que corria 270 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, o que dava o controle sobre a África, Ásia e leste da América do Sul (Brasil). Aos espanhóis foram atribuídos todos os territórios a oeste dessa linha que se revelariam ser a parte ocidental do continente americano e as ilhas do Oceano Pacífico.
II. O Descobrimento do Brasil
A 22 de Abril de 1500 a Armada comandada por Pedro Álvares Cabral, rumando à Índia com o objetivo de efetivar a ligação comercial à costa do Malabar, após a viagem pioneira de Vasco da Gama, avistou terra no Atlântico Sul. O desembarque que se seguiu, naquela que seria inicialmente chamada de Terra de Vera Cruz, marcou o momento de descoberta oficial do que viria a ser o Brasil.
2.1 A armada A armada de Pedro Álvares Cabral começou a ser preparada logo após o regresso de Vasco da Gama, tendo como objetivo firmar os interesses portugueses na Índia, recentemente alcançada. Foram reunidos um total de treze navios dos quais nove eram naus e três caravelas, contando com um navio de menor dimensão, para abastecimentos. Esta armada representava a maior força naval a partir de Portugal até então. Com exceção dos nomes de duas naus e de uma caravela, não se sabe como se chamavam os navios comandados por Cabral. Estima-se que a armada levasse mantimentos para cerca de dezoito meses.
Não se sabe o nome da nau capitânia, mas a nau sota-capitânia, capitaneada pelo vice-comandante da armada Sancho de Tovar, se chamava El Rei. A outra cujo nome se sabe é a Anunciada, comandada por Nuno Leitão da Cunha. Esta última pertencia a Dom Álvaro de Bragança e fora equipada com os recursos de banqueiros florentinos que investiam no comércio de especiarias. As cartas que eles trocaram com seus sócios e acionistas italianos preservaram o nome do navio.
Conservou-se ainda o nome da caravela capitaneada por Pero de Ataíde, a São Pedro. A outra caravela, comandada por Bartolomeu Dias, teve o seu nome perdido. A armada era completada por uma naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos. Coube a ela retornar a Portugal com as notícias sobre a descoberta do Brasil.
Baseado em documento incompleto que localizou na Torre do Tombo, em Lisboa, Francisco Adolfo de Varnhagen identificou cinco das dez naus que compunham a frota cabralina. Seriam elas Santa Cruz, Vitória, Flor de la Mar, Espírito Santo e Espera. A fonte citada por Varnhagen nunca foi reencontrada, portanto a maioria dos historiadores prefere não adotar os nomes por ele listados. A armada, assim, continua quase anônima.
Pouco antes da partida, o Rei mandou rezar uma missa, no Mosteiro de Belém, presidida pelo bispo de Ceuta, D. Diogo de Ortiz, que benzeu uma bandeira com as armas do Reino e entregou-a em mãos a Cabral, despedindo-se o rei do fidalgo e dos restantes capitães.
Vasco da Gama teria tecido considerações e recomendações para a longa viagem que se chegava: a coordenação entre os navios era crucial para que não se perdessem uns dos outros. Recomendou então ao capitão-mor disparar os canhões duas vezes e esperar pela mesma resposta de todos os outros navios antes de mudar o curso ou velocidade (método de contagem ainda atualmente utilizado em campo de batalha terrestre), dentre outros códigos de comunicação semelhantes.
2.2 Terra à vista!
A expedição de Cabral chegou, primeiramente, às Ilhas Canárias, depois foi para o Arquipélago de Cabo Verde, onde uma caravela sumiu no meio do mar. Seguiram uma rota sudoeste, cruzando a linha do Equador, como fizera Vasco da Gama.
Em 21 de abril, avista-se os primeiros sinais de terra firme deste a partida do Cabo Verde. No dia seguinte, a expedição ancora em um monte, ao qual deram o nome de Pascoal. Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias e seus homens descobriam o Brasil.
Caminha noticia em sua carta o “achamento” da terra que recebeu o nome de Vera Cruz:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.
A carta relata também a nomeação do que viria a ser a cidade de Porto Seguro, município situado no extremo sul da Bahia:
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
III. Contato com os nativos – a narrativa de Pero Vaz de Caminha No dia 24 de Abril, Andreza Balbino e Cabral receberam os nativos no seu navio.O grupo de índios reconheceu de imediato o ouro e a prata no navio — um fio de ouro de D. Pedro e um castiçal de prata — o que fez com que os portugueses inicialmente acreditassem que havia muito ouro naquela terra. A curiosidade tocou-lhes pelos objetos não reconhecidos – como umas contas de rosário, e para surpresa dos portugueses pelos objetos reconhecidos – os metais preciosos:
Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Entretanto, em sua carta, Caminha confessa que não sabia dizer se os índios diziam mesmo que ali havia ouro, ou se o desejo dos navegantes pelo metal era tanto que eles não conseguiram entender diferentemente:
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Os portugueses entravam, desta forma, pela primeira em contato com ameríndios. A região era habitada pela tribo dos Tupiniquins, pertencentes ao vasto grupo linguístico Tupi-Guarani, com os quais se realizaram as primeiras trocas comerciais.
3.1 Os “índios”
Caminha nos dá a descrição dos índios que subiram ao barco e de todos os outros que avistou nas terras recém descobertas pelos portugueses, dando detalhes de sua fisionomia e dos seus ornamentos:
[…] e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
Há outra descrição mais detalhada de nativos e seus ornamentos mais adiante na carta. Pero Vaz de Caminha repara num segundo tipo de adorno labial indígena, em forma de disco (que ele chama ‘espelho’).
Na pintura, ele repara no padrão geométrico que para ele lembra um jogo de xadrez (ele refere-se a ‘escaque’, que é o nome das quadras do jogo de xadrez):
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.
Outro choque para Vaz de Caminha foi ver as mulheres nativas totalmente nuas e, para espanto do português, sem pelos pubianos:
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Mas Caminha não abriu mão também de ser o primeiro a reparar na beleza nativa daqui, traçando um comparativo com as portuguesas:
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.
Mais da pintura corporal e da nudez das mulheres Caminha descreve:
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.
Diversas vezes ao longo da carta, Caminha menciona que os índios não são ‘fanados’, ou seja, que não são circuncidados.
Caminha faz também a primeira descrição de uma embarcação indígena, que ele chama ‘almadia’:
E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.
Destes outros índios, Caminha repara um novo padrão de pintura. Em vez de preto ou azulado (tinta extraída do jenipapo), estes índios estão pintados de vermelho (urucu):
Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
Outro aspecto frequentemente mencionado por Caminha, com relação aos nativos, é a sua limpeza:
Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.
3.2 O comércio com os nativos
O choque cultural foi evidente. Os indígenas não reconheceram os animais que traziam os navegadores, à exceção de um papagaio que o capitão trazia consigo:
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Ofereceram-lhes comida e vinho, os quais os índios rejeitaram:
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Mais tarde, retornados os índios em terra, é narrada a primeira verdadeira transação comercial entre os navegadores portugueses e os nativos americanos. Ao contrário do que diz a mitologia popular, os índios não trocaram ouro por espelhos, e sim água potável e arcos por cascavel (guizos), manilha (um tipo de bracelete) e carapuças de linho:
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Caminha relata também a primeira vez que os portugueses consomem frutos do mar nativos da América do Sul:
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia.
Outra coisa de que se alimentam os portugueses é o palmito:
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
O comércio entre portugueses e nativos é constante. Os produtos mais trocados são, da parte dos índios, arcos, flechas, cocares, colares, aves e provisões (comida e água) e da parte dos portugueses carapuças, guizos, braceletes, instrumentos de ferro e vinho:
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Os aspectos rudimentares da economia e da agricultura nativa são apontados por Caminha:
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.
Apesar dos esforços, os portugueses não encontram aqui qualquer metal precioso que desejavam encontrar. Nem prata, nem ouro, nem mesmo ferro:
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
3.3 Os índios descobrem os portugueses e seus costumes
Mais tarde, em uma ilha cujo nome não é mencionado na carta, os portugueses “pescaram peixe miúdo, não muito” e então participaram da missa rezada pelo frei Henrique “em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali”. Missa essa que segundo o parecer de Caminha “foi ouvida por todos com muito prazer e devoção”. Após a missa houve uma pregação do frei. Tanto a missa quanto a pregação são acompanhadas por nativos, conforme menciona Caminha:
Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço.
Os portugueses tentam passar aos nativos um pouco de sua crença:
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
Pela primeira vez, os nativos ouvem música dos recém-chegados, tocadas por um gaiteiro:
Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito.
Durante um dia de trabalho, os portugueses começam a lavar roupas e a trabalhar com carpintaria para confeccionar uma cruz e obter lenha. Durante este processo os índios ajudam com o carregamento de madeira, mas também se impressionam com a tecnologia européia dos instrumentos de ferro, dos quais não dispunham:
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Outra missa é realizada pelo frei Henrique. Dessa vez diante da Cruz construída pelos portugueses e com a presença de dezenas de nativos:
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.
Caminha parece realmente entusiasmado com a possibilidade de conversão dos nativos ao cristianismo e de sua plena integração à sociedade portuguesa, com direito a religião católica e fidelidade ao rei. O único obstáculo, assim pareceu a Caminha, era o fato de não entenderem ainda a língua portuguesa:
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.
3.4 Navegadores e degredados
Parece explícito no texto que a cordialidade dos portugueses com os índios é uma medida sobretudo de segurança, para manter os índios “apacificados” e para facilitar o comércio na expectativa de encontrar alguma riqueza estimada pelos portugueses, como o ouro. A integração com os americanos parece um processo já conhecido pelos portugueses de suas navegações na África, um processo que busca facilitar a estadia, a obtenção de suprimentos e a segurança da tripulação. Segue mais alguma observação de Pero Vaz de Caminha:
Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
Via de regra, a tripulação do navio não se arriscava a ir diretamente nos povoamentos indígenas, ficando esta tarefa a cabo dos degredados. Inúmeras vezes estes são mandados para dormir entre os índios, mas estes recusam e os enviam de volta. Provavelmente, uma medida de segurança e parte da servidão punitiva imposta aos degregados. Os mesmos são os primeiros a ver e descrever as habitações dos nativos:
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem.
Caminha menciona também dois degredados que vieram com os navegadores, e que aqui poderiam ser deixados ou simplesmente trocados com os índios. Considerou-se também a hipótese de levar, à força se necessário, alguns nativos da América “de amostra” para o rei de Portugal:
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.
E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.
Os degredados parecem ter um papel importante na missão, embora inferiorizados pelo seu status. Os degredados ficam para aprender a língua e transmitir a crença dos portugueses, de modo a facilitar as relações entre os nativos e os navegadores:
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Ao que parece, alguns portugueses gostaram tanto da vida dos índios que acharam melhor ficar por aqui a voltar de navio para Portugal. Além dos degredados que ficariam mesmo contra a própria vontade, dois grumetes fugiram da tripulação antes desta partir:
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
A Coroa portuguesa foi informada do descobrimento por intermédio de Gaspar de Lemos, mas a noticia apenas foi divulgada quando do regresso dos primeiros navios da armada de Pedro Álvares Cabral, em meados de 1501. Mantinham-se, no entanto, dúvidas sobre a natureza da terra recém-descoberta, se de uma ilha ou de terra firme se tratava, e acerca da sua dimensão, apenas esclarecidas pelas viagens de exploração que se sucederam nos anos seguintes, das quais a primeira, sob o comando de Gonçalo Coelho, partiu em Maio de 1501.