20 anos sem Roque Spencer Maciel de Barros: homenagem a uma grande inspiração intelectual

Existem autores que nos REtransmitem grandes ensinamentos e, também, existem autores que, além de transmitir novos saberes, marcam a nossa vida. Como grande estudioso da filosofia liberal devo muito a John Locke (1632-1704), Karl Popper (1902-94) e, claro, a autores brasileiros cujo maior conhecimento deles seria de grande valia para as atuais e inquietantes discussões no nosso país. Posso mencionar, como belos exemplos, Alberto Oliva, Francisco de Araújo Santos, José Guilherme Merquior (1941-91) e Roque Spencer Maciel de Barros (1927-99). Quanto a este, uma inspiração especial para eu encarar a vida, estamos completando, nesta quarta, 20 anos de sua partida. Gostaria de falar um pouco mais acerca de sua relevância para as minhas empreitadas intelectuais.

Continue Lendo “20 anos sem Roque Spencer Maciel de Barros: homenagem a uma grande inspiração intelectual”

Faculdade não é para todos

Universidades 2

Já escrevi diversos textos sobre reformas que eu faria na educação brasileira (se eu tivesse esse poder). Em geral, foquei nos ensinos básico, fundamental e médio, pois entendo que não adianta mexer na faculdade sem antes mexer na base. Mas hoje queria falar um pouco sobre ensino universitário.

Se tem algo ridículo no Brasil no que tange o ensino universitário é a ideia de que todo mundo precisa fazer faculdade. Essa ideia permeia nossa cultura e toda a estrutura de ensino, num processo de alimentação mútua. Ou seja, a estrutura de ensino nos força a manter essa cultura e a nossa cultura nos força a alimentar essa estrutura. Mas qual o grande problema dessa ideia? Na verdade são dois. Vamos destrinchar.

Primeiro: faculdade é (pelo menos foi projetado para e deveria ser) um local para formar uma elite intelectual. Assim, não há sentido em haver faculdade se as pessoas de lá forem medíocres ou ineptas intelectualmente.

Segundo: nem todo mundo deseja ser um intelectual. A maioria das pessoas quer apenas sair do ensino médio, conseguir um bom emprego e financiar suas necessidades e desejos.

Aqui é importante frisar que “intelectual” não é sinônimo de “inteligente”. Há pessoas muito inteligentes que não são intelectuais. Elas utilizam sua inteligência para as coisas práticas da vida: fazer contas em seu comércio, investir, ser estratégico em algum esporte, desenhar bem, jogar algum jogo com maestria, organizar a casa, ser criativo, ter boas ideias, saber conversar sobre vários assuntos, fazer artesanato, fazer belas obras de carpintaria, costurar boas roupas, etc. Mesmo uma grande quantidade de conhecimento teórico não necessariamente faz de alguém um intelectual. A pessoa pode ser apenas inteligente.

O intelectual não é o inteligente. É sim aquele que se debruça sobre temas de maneira aprofundada com o intuito de conhecê-los, entendê-los, análisá-los e explicá-los. Trata-se de um objetivo menos voltado para “o ganha pão” e mais centrado no estudo em si.

Um eletricista faz um curso para aprender a prática da instalação e manutenção de estruturas elétricas. Sua finalidade é prestar seus serviços para ganhar dinheiro. Seu estudo possui apenas essa finalidade. E ele cessa quando isso é aprendido, dando lugar ao mero emprego do que se aprendeu. Já um físico que trabalhe em um laboratório de robótica, ou um filósofo que estude metafísica, possuem um objetivo para além do ganho. Eles estudam para continuar estudando. E seus estudos podem gerar frutos para a sociedade que vão além do benefício direto de seus serviços prestados. O eletricista conserta seu sistema elétrico. O filósofo gera ideias que serão discutidas por milhões de pessoas pelos próximos séculos talvez.

Em resumo, o intelectual tem como finalidade de vida e trabalho uma atividade constante de estudo (o que chamamos de atividade intelectual). O inteligente apenas usa sua inteligência para finalidades mais pontuais.

Não há qualquer demérito em não ser um intelectual. E sem dúvida uma pessoa com grande inteligência pode ser mais inteligente que um intelectual em muitas coisas (por vezes até na maioria das coisas). Um intelectual, inclusive, pode não possuir grande inteligência, mas apenas grande conhecimento e talvez esforço. E grande conhecimento não vale muito se a qualidade do conhecimento e as conclusões a que um intelectual chega forem ruins, falhas, ilógicas.

Uma vez que se entenda isso, percebe-se que a sociedade precisa tanto de pessoas inteligentes sem pretensões intelectuais, quanto pessoas inteligentes que desejam seguir a carreira intelectual. Os dois grupos são igualmente importantes.

É aqui que voltamos ao problema brasileiro. Ele mistura as duas coisas. A faculdade passa a ser não um local com intuito de formar uma elite intelectual, mas um local com intuito de deixar o currículo melhor para o mercado de trabalho. E isso é engendrado para diversas profissões. Assim, a universidade se torna imprescindível para todos os que querem uma vida melhor, independente de almejarem uma vida intelectual ou não.

Note: a faculdade se torna uma necessidade para quem não tem necessidade de uma. Talvez fique mais claro com um exemplo. Suponha que o governo crie uma lei que obrigue todos os pedreiros a fazerem faculdade de pedreiro. A pessoa que fizer obra em casa sem um pedreiro formado, será multada. Nesse cenário, você terá diversos pedreiros fazendo faculdade apenas para poderem construir casas, mas sem qualquer pretensão intelectual. E o que é pior: eles terão de fazer faculdade para algo que pode-se aprender facilmente sem uma. Ou seja, criou-se uma necessidade que não existe originalmente.

Os resultados desse cenário absurdo seria a redução do número de pedreiros, a existência de diversos pedreiros ilegais e o enchimento das faculdades com pessoas sem qualquer intenção de serem intelectuais, o que rebaixa o nível de intelectualidade dos universitários.

O exemplo dos pedreiros pode parecer bizarro e distante, mas a verdade é que isso ocorre com um monte de profissões que não precisariam ser faculdades. Vou começar pelo jornalismo, que é a minha formação acadêmica. Definitivamente, não há qualquer necessidade de uma faculdade de jornalismo. Primeiro porque para ser jornalista basta escrever bem (e rápido), falar bem em público (para o caso de quem quer seguir jornalismo televisivo ou de rádio), saber apurar os fatos e ter uma boa capacidade de análise. A maioria dos melhores jornalistas que tivemos no Brasil (nos séculos 19 e 20) não fizeram faculdade. Eram “apenas” excelentes escritores, apuradores e analistas. Segundo porque um curso de dois anos com ênfase na prática seria mais que suficiente para quem quer começar a seguir a carreira já com algum conhecimento e experiência.

Minha faculdade de jornalismo pouco me acrescentou no que tange o jornalismo prático. Por ser uma faculdade, a teoria ganhou grande destaque. E por ter uma estrutura deficitária, o ensino prático foi pouco e de má qualidade. Considero que minha faculdade de jornalismo me fez um comunicólogo, um acadêmico, mas não um jornalista. Do ponto de vista prático, que é o mais importante (já que a ideia é formar um jornalista), ela de nada me serviu.

Em contraponto, um amigo meu, que não fez faculdade de jornalismo, trabalhou alguns anos em alguns jornais pequenos da Baixada Fluminense. A prática cotidiana, a experiência e o fato de ele ser um excelente escritor fizeram dele um jornalista de verdade, um jornalista que eu, formado, não sou e nunca fui.

A teoria jornalística, a sua história e matérias não jornalísticas, como economia, filosofia, sociologia, história, etc. são importantes, claro. Mas não para o fazer jornalístico diário. Para a prática, basta um mínimo desse conhecimento teórico. O aprofundamento nessas áreas é o que difere um profissional prático (como é o jornalista) de um intelectual.

É óbvio, nada impede, que alguém seja jornalista e intelectual. Mas trata-se de escolha pessoal, não de necessidade. A mistura das duas coisas em uma faculdade faz com que tanto quem quer ser só um profissional prático como quem quer ser intelectual percam tempo. Pior: a mistura imposta na faculdade reduz a qualidade tanto da parte prática, quanto da parte intelectual. Querendo focar igualmente nas duas coisas para dois grupos que precisam de ênfases distintas, acaba por não se especializar bem em nenhuma delas.

Em suma, jornalismo poderia facilmente ser um curso de dois anos voltado para a prática e conhecimentos técnicos. O que vai definir, para além da prática, se um indivíduo será bom jornalista ou não é sua índole moral e seu apreço por leitura, coisas que não se aprendem em uma faculdade.

De igual maneira, administração, contabilidade, marketing, publicidade, relações públicas, design, nutrição, pedagogia e tantas outras formações poderiam ser cursos em vez de faculdades. A minha proposta seria a seguinte: transformar diversas formações que exigem uma atividade mais prática e menos intelectual em cursos de dois anos a serem oferecidos no ensino médio, a partir do terceiro ano. O aluno faria um ano ainda concomitante ao ensino médio e completaria o outro ano de curso já depois de terminar o colégio.

Como resultado, aos 18 ou 19 anos, a maioria dos jovens já teria um conhecimento prático profundo em alguma profissão. Aqueles que quisessem seguir carreira acadêmica ou se tornarem professores, poderiam optar pela faculdade. Para tanto, as faculdades poderiam apresentar, além das graduações normais que restariam, cursos de complementação. Seriam cursos de dois anos, voltados para a parte teórica, que serviriam para complementar os dois anos de curso prático do jovem. Este segundo curso daria a ele a possibilidade de dar aulas daquela área nos cursos práticos e/ou continuar na área acadêmica, pois os dois diplomas teriam o valor de uma graduação.

Nesse modelo, eu faria valorizar o autodidatismo também. Assim como creio que o homeschoollig é um modelo bom, que deve ser permitido às famikias que assim desejam, há quem tenha a capacidade de aprender de modo autodidata. É justo que pessoas que adquiriram grandes conhecimentos em uma área ao longo de anos, tenham um ou mais modos de ter esse conhecimento reconhecido. Dois modos que podem ser pensados são: um sistema de provas na qual o candidato passando estaria habilitado a apresentar seu trabalho monográfico, dissertação ou tese, para defender o título. Outro modo seria por tempo de trabalho na função ou por produção de obras de grande impacto e rigor científico. Essas pessoas ganhariam título honoris causa, sem precisar cursar faculdade.

No caso de jornalistas, por exemplo, alguém que tivesse trabalhado por dez anos como um poderia receber o título de comunicólogo (ou prestar maiores prova para receber esse título), o que lhe daria requisito pra dar aulas. Há maneiras de se pensar isso. O importante aqui não são os detalhes, mas o espírito da ideia. O sistema educacional como um todo precisa valorizar o verdadeiro intelectual. Para isso, a faculdade não deve ser um lugar para meramente te dar currículo melhor para trabalhos práticos. Muito menos um lugar cujo diploma, um pedaço de papel, não possa ser dado a um autodidata ou profissional experiente que, embora não tenha passado por todo o rito tradicional, seja claramente um intelectual de ponta.

Como é hoje, o diploma deixou de ser uma evidência de intelectualidade. Passou a ser mera formalidade exigida pelo Estado e que não reflete necessariamente um alto nível do diplomado. Assim, criou-se uma curiosa distorção onde muitas vezes pessoas não diplomadas possuem um apreço pelo conhecimento e uma cultura intelectual muito maior do que pessoas que tem diplomas. O nível da faculdade baixou tanto que em vez de ela ser um diferencial, passou a ser uma quase certeza de que a pessoa é tão tapada como qualquer outra. Faculdade já não diferencia em nada.

As medidas aqui propostas acabariam com essa necessidade fictícia de faculdade para todos que nos tem sido impostas; faria as pessoa perderem menos tempo na vida; e aumentaria a possibilidade de empregos para os mais jovens. Ao mesmo tempo, tornaria a faculdade um lugar mais reservado para quem quer algo a mais que um emprego prático: uma vida voltada à atividade intelectual.

Agora, claro, não adianta fazer essas mudanças se não houver modificações lá nas bases. E é o que tenho dito em todos os meus textos sobre educação. Você só resolve o problema do baixo nível e do pouco acesso das pessoas ao ensino superior se prepará-las melhor nos ensinos básico, fundamental e médio. E para isso, tenho receitado sempre as mesmas medidas: retorno da autoridade do professor na sala de aula e na escola, reformulação do ECA, expulsão de alunos desordeiros e desrespeitosos, militarização de pelo menos 25% das escolas públicas, estímulo à reestruturação das famílias e aos valores familiares e cívicos, esvaziamento das salas de aula, implementação do sistema de bolsas (vouchers) em colégios privados para alunos pobres de bom desempenho, legalização do homeschoollig, adoção de maior transparência nas contas das escolas, etc.

Essas medidas visam atacar os dois problemas básicos da nossa educação atual: a má administração das escolas públicas (que abre margem para corrupção também) e a falta de limites dos alunos. Sem limites, não há ordem. Sem ordem, não há concentração, silêncio, respeito, interesse, noção de relevância e, por consequência, aprendizado. Com má administração, não há verba, nem participação das pessoas (pais, alunos e professores) nos assuntos financeiros da escola, o que a deixa eternamente centralizada nas mãos de burocratas. Mas isso é assunto de outros textos. A suma do texto de hoje é: faculdade não é e não deve ser para todo mundo. Entender isso nos ajuda a perceber que simplesmente empurrar um monte de gente para dentro dela não mudará a situação do país. Teremos graduados desempregados e acadêmicos sem apreço e aptidão intelectual.

Antônio Gramsci e a Revolução Cultural

Esse texto tem como objetivo relatar de forma simples e explicativa as estratégias usadas pelo ideólogo comunista Antônio Gramsci para fazer com que suas idéias fossem aceitas pela sociedade.

gramsci

Continue Lendo “Antônio Gramsci e a Revolução Cultural”

Como a doutrinação marxista nas escolas pode ser bastante sutil

Este texto foi publicado originalmente no blog Mundo Analista. Para ler o original, clique aqui.

Sutileza

Aí vai um exemplo de como a doutrinação marxista nas escolas pode ser bastante sutil. O professor ensina sobre o surgimento do liberalismo. Daí cita Adam Smith e fala sobre seus conceitos de divisão de funções, a competição gerando produtos melhores e mais baratos, a chamada “mão invisível” do mercado e etc. Seguindo a cronologia histórica, o professor fala, numa ocasião posterior, sobre o surgimento do socialismo cientifico (sic). Daí cita Karl Marx e fala sobre seus conceitos de mais valia, exploração do proletariado, luta de classes, competição gerando monopólios e etc. Bom, foram citados os dois lados. Então, não houve doutrinação, correto? Errado.

Note que o socialismo surge para combater o capitalismo. O capitalismo encontra seu ponto alto no liberalismo econômico. Ou seja, não há como falar em socialismo sem falar em liberalismo. Entretanto, se eu ensino sobre o surgimento do liberalismo, depois sobre o surgimento do socialismo, e paro por aí, a impressão que fica é que o socialismo refutou o liberalismo. Afinal, o professor não expôs que há réplicas ao socialismo e quais são elas.

Você pode estar se perguntando: “Mas se o professor expusesse as réplicas ao socialismo e parasse por aí, ficaria a impressão de que o liberalismo refutou o socialismo”. Sim. Por isso, o professor teria que expor também as respostas do socialismo. E isso não acaba nunca? Acaba sim. Ao expor pelo menos uma argumentação e uma réplica de cada lado, você mostra ao aluno que a discussão é longa, que não terminou e que o aluno pode estudar os autores se quiser. Daí o professor vai mostrar a as principais obras e autores de ambos os lados.

Quando isso não é feito, pensamos que tudo termina em Marx. A falta de menção de outros autores importantes e do fato de que a discussão permanece nos faz crer que o capitalismo é mesmo uma merda, que só quem o defende são os bilionários exploradores e, logo, Marx está com a razão. Quando se chega a essa conclusão porque se estudou os dois lados, tudo bem. Mas chegar a essa conclusão porque só se lhe apresentou um lado, isso é doutrinação.

Esse tipo de doutrinação é solidificada quando chegamos na Crise de 1929. Qualquer livro didático do ensino médio vai dizer que a culpa da crise foi da supreprodução de bens de produção, causada pelo liberalismo econômico. Ninguém ensina que há outras teorias econômicas de peso sobre a crise de 29. Logo, a impressão que fica é que o liberalismo realmente é muito problemático. Ponto para Marx novamente. E mais uma vez: só quem defende o capitalismo é bilionário explorador. Não há bons argumentos para o capitalismo.

Posteriormente, a doutrinação continuará quando o professor e os livros do MEC associarem o liberalismo econômico à fome na África, ao fascismo, ao nazismo e às I e II Guerras Mundiais. Também encontrará solo fértil quando se utilizar o termo “neoliberalismo” para mencionar processos de privatização e redução do Estado nos anos 80 e 90. Afinal, quando ouvimos a palavra “neoliberalismo” imaginamos que se trata de um novo liberalismo. Se o liberalismo causou tantos problemas (segundo a impressão que todo o ensino supracitado nos passa), o neoliberalismo passa a ser uma tentativa estapafúrdia de fazer retornar algo ruim, mas com uma máscara nova.

Você pode perguntar: “Mas o socialismo também não deu certo nos outros países. E isso muitas vezes é dito”. Mas sabe como isso é dito? Mais ou menos assim: “O socialismo real pretende ascender o proletariado ao poder e transformar os meios de produção em propriedade do povo, de modo que não haja exploração e todos possam viver dignamente. Nesse estágio, o Estado se torna desnecessário e o socialismo passa a ser comunismo. Mas o comunismo nunca foi implantado no mundo”.

Percebe a impressão que essa resposta deixa no aluno? A impressão de que o socialismo só não deu certo porque não chegou à fase comunista, ao comunismo real. Então, a ideia é boa. Não se pode criticar o que não existiu. Logo, o comunismo ainda pode dar certo.

Essa é um forma de doutrinar. Há outra forma. O professor/livro do MEC mostrará que o socialismo se desvirtuou de seus objetivos. A base explicativa aqui é a mesma: o comunismo pretende criar uma sociedade justa. Os burocratas do socialismo não fizeram isso. Logo, esse socialismo não é o verdadeiro. A impressão que fica: “Então, podemos continuar tentando implantar o socialismo verdadeiro que levará ao comunismo de fato”.

Se voltarmos um pouco, cronologicamente, veremos que essa doutrinação sutil existe quando se fala do iluminismo e da revolução francesa. Tanto um como outro são pintados como coisas maravilhosas para a humanidade. Em geral, não são citados os grandes autores que viram falhas nesses dois movimentos.

A omissão de estudos sobre Edmund Burke, por exemplo, é flagrante. Seria imprescindivel aprender sobre o iluminismo e a revolução francesa também sob a ótica de Burke. Mas seu nome sequer é citado nas aulas. E o modo como pintam a Igreja Católica? Menciona-se só os seus erros. Mas e os acertos? E a visão dos grandes autores católicos sobre o assunto?

Vamos para o século XX de novo. Brasil. 1964. Qual a narrativa que prevalece nos livros e nas aulas? Golpe militar. Deveria prevalecer alguma outra narrativa? Não. O que deveria ser feito é expor duas ou três narrativas principais. Como professor, eu faria mais ou menos assim:

“Galera, em 1964 houve uma intervenção militar que depôs o presidente João Goulart. Esse é o fato bruto. Há pelo menos três visões principais para explicar o fato: a visão de esquerda, a visão conservadora e a visão militar. Vou explicar o fato segundo a ótica de cada um desses grupos. Vou expor os principais autores, livros e textos de cada visão. Na prova, cobrarei as três visões. Vocês precisam saber sobre todas. Estejam, no entanto, à vontade para adotarem a visão que quiserem para si”.

Na exposição dos autores, livros e textos, eu realmente mostraria os principais, os de peso, sem fazer uma seleção fajuta do grupo que não me interessa.

Isso é ensino. O que passa disso é doutrinação. Infelizmente, acostumou-se a entender que para ensinar sobre um fato é preciso adotar uma narrativa oficial, ignorando ou escondendo todas as outras, por mais importantes que sejam.

Daí você me dirá: “O que importa? No Brasil, a maior parte dos alunos não se esforça para aprender. Não prestarão atenção nessas nuances”. Há duas coisas para se dizer quanto a isso. Primeiro: em uma turma de 50 alunos, geralmente 3 ou 4 são esforçados. Eles irão apreender essas nuances. E desses 3 ou 4, provavelmente 1 ou 2 entrarão na faculdade. E lá, meus amigos, a doutrinação continua, só que mais forte. Ele conhecerá DCE’s tomados por partidos políticos, terá aulas com professores que usam as aulas propositalmente para doutrinar, irá a diversos eventos de posição política enviesadas e topará com alunos já doutrinados.

No futuro, esses 1 ou 2 de cada sala que passaram para a faculdade serão professores, jornalistas, advogados, juízes, sociólogos, historiadores, psicólogos, antropólogos, escritores e palestrantes. Sim, pessoas influentes e com status de intelectual. Percebe o problemão?

Segundo: sim, a maioria dos alunos não se esforça para aprender. Em vez disso, usam as aulas para desrespeitar o professor, falar alto, pichar parede, quebrar cadeira e tirar zero nas avaliações. Mas não era assim nas décadas 1960 e 1970. Os alunos eram mais disciplinados, cantava-se o Hino Nacional, o professor era respeitado pelos alunos e pelos pais, e os desordeiros tinham medo de irem para a direção. O que mudou de lá para cá? Eu explico.

Mudou que “intelectuais” infectaram a cabeça de políticos, jornalistas, universitários, psicólogos, juízes, escritores e palestrantes com ideais do tipo: “Criança e adolescente precisam ter mais liberdade de escolha e ação”, “A ordem e o respeito ensinados pelo militarismo não são virtudes, mas opressão”, “Criança e adolescente podem e devem ser incentivados a aprender e fazer sexo”, “Não existe saber mais ou saber menos, existem saberes diferentes”, “Não se pode dar palmadas nos filhos”, “Valores judaico-cristãos são retrógrados e opressores”, “Ser promíscuo é virtude”, “Engravidou? Aborte!”, “Leis duras contra criminosos são opressoras”, “Criminosos são vítimas da sociedade”, “Condição social ruim é justificativa para cometer crimes”, “Criança e adolescente não devem ser tratados como adultos quando cometem crimes”, “A religião é opressora”, “Uma família estruturada é opressora”, “A virgindade antes do casamento não é uma virtude”, “Funk obsceno é cultura”.

Ideias como essas foram sendo disseminadas aos poucos, fazendo esmorecer o respeito, a ordem e os bons costumes na sociedade e criando filhos e alunos sem limites, desordeiros, imorais e, claro, alienados. Não espere que pessoas assim queiram estudar. Mas espere dessas pessoas alienação suficiente para não depor a classe de burocratas que se mantém no poder por décadas às custas deles.

Os 3 ou 4 que se salvarem de cada turma, provavelmente manterão exatamente esse sistema. Eles podem escapar do emburrecimento, mas estarão à mercê da doutrinação. E assim o sistema se retroalimenta. Você percebe agora como a doutrinação pode ser sutil? E percebe como essa doutrinação sutil nos trouxe até à desordem em que nos encontramos hoje? Espero que sim. Mas a pergunta que realmente quero fazer é: você vai continuar indiferente a isso?

A Corrupção da Geografia: a sedução marxista

por Anselmo Heidrich[i]

 

A maioria dos novos revolucionários são essencialmente ao que parece, “liberais brancos”, prontos a lamentar os supostos males da sociedade e a mostrar seus corações sangrando como emblemas ou antigas gravatas escolares – e mais rapidamente ainda fugir do trabalho duro que o diagnóstico e a ação exigem. Um pequeno grupo de radicais marxistas, procura ferver a sopa dos lamentos dos liberais. Em nenhum grupo há qualquer engajamento profundo no sentido de produzir mudança construtiva através de meios democráticos. (…) Se qualquer deles fizer a “Nova Geografia” dos anos 70, eu estou fora.[1]

B.J.L. Berry apud R.J. Johnston, Geografia e Geógrafos.

 

Quando adolescente me impressionavam dois campos do conhecimento, a natureza e a sociedade. Vez que outra tinha sérias dúvidas sobre qual faculdade cursar, a biologia ou a sociologia. Justamente por isto, eu optei pela geografia que, para aqueles que a conhecem minimamente, sabem que se trata de uma área de intersecção. Esta mescla de conteúdos é o campo propício para estudos envolvendo impactos ambientais causados por atividades produtivas, adaptação das sociedades às condições físicas do meio etc. E se formos observar com maior detalhe, a geografia se assemelha à medicina na sua estruturação interna… Quando acometidos com alguma patologia, nós consultamos um clínico geral para depois procurarmos um especialista. Exatamente assim é o trabalho de um geógrafo (naqueles países onde se faz valer este título) que, dependendo do trabalho a ser feito se requer um estudo mais aprofundado, seja em algum ramo da geografia física ou geografia humana (“cultural”, como também é chamada nos países de língua inglesa). Imagine se tiveres que escolher a melhor localização para uma distribuidora de alimentos ou uma planta fabril que tenha melhor dispersão de poluentes: podemos contatar um geógrafo com conhecimentos específicos em climatologia ou, no primeiro caso, alguém que conheça modelos de localização industrial, geografia econômica etc. Enfim, se trata de um belo e útil campo do conhecimento, mas qual não foi minha surpresa ao descobrir que isto era não só mal visto, como justamente o foco de uma crítica pesada na época que cursei minha faculdade, lá por meados dos anos 80. A razão disto é que a geografia, assim como muitas ciências e saberes disciplinares são acometidos por modas, mas não necessariamente o que Thomas Kuhn chamava de paradigmas científicos. A diferença é que, ao invés de ter sido um modelo de pesquisa e pressupostos, crenças e valores partilhados por um longo período, o marxismo na Geografia se caracterizou por um “voo de galinha”, justamente por ser curto, efêmero e fraco. Suas motivações foram mais políticas, de oposição a uma determinada conjuntura ou sistema político-econômico que de metodologia científica propriamente dita. Embora marxistas gostem de acentuar sua base metodológica – o materialismo histórico e dialético –, a grande maioria trata de enfatizar temas específicos em seus estudos (a “desigualdade”, a “exploração” etc.) sem saber exatamente o que é dialética ou entender a necessidade (admitida pelo próprio Marx) de desenvolvimento das “forças produtivas” (tecnologia) para sua posterior evolução social. Atualmente novas tendências, típicas modas ou tendências de longo prazo (como os estudos ambientais) competem com a deturpação marxista da geografia. Só que a malfadada “geografia crítica”, como os geógrafos marxistas gostavam de denominar sua corrente, era a moda dominante na academia quando tive o desprazer de estar cursando minha faculdade. E ela não vinha como uma “visão alternativa”, mas com todas suas mazelas obscurantistas como bônus que poluem e infectam a cabeça de um estudante, a começar pelo desprezo por tudo que poderia ser embutido dentro do rótulo de tradicional, isto é, tudo que a geografia tinha produzido até então. Mas como? Diria alguém, um saber que tem ligações com a natureza, o meio ambiente, clima, solos, vertentes, relevo etc. pode ter influência de uma já combalida Filosofia da História? Pois é, vocês não podem esquecer que a geografia tem sua seção humana e lá pelos anos 60, nos EUA, os acadêmicos daquele país foram seduzidos por um discurso que era, dada a conjuntura, bastante conveniente à contracultura e oposição ao establishment. Mas, por mais que se critique a ordem econômica e ideológica do momento, ela ainda era democrática, ao contrário do marxismo que, como sabemos, cerceia internamente a liberdade de pensamento antes de se configurar em uma ordem institucionalizada através da cristalização de conceitos tidos como inquestionáveis. Também não esqueçamos que os vícios de linguagem que, o marxista tão bem expressa através de clichês servem como explicações automáticas… Tive colegas de curso que aliavam esta pretensão de saber a sua preguiça crônica de estudar ao dizer “que não havia mais diferenciação territorial”, “estava tudo igualado, uniformizado pelo capital” etc. Frases grotescas, até mesmo para um estudioso marxista soam como uma mistura de sermão religioso e marketing de refrigerante de tão vulgares e generalizantes, nesta periferia intelectual em que se transformaram os cursos de humanidades no Brasil.

O marxismo é sedutor? Sim, muito, mas isto não quer dizer verdadeiro. Uma filosofia que apresente pressupostos nobres, de compaixão pelo outro, mas que ao mesmo tempo não veja a filantropia como um modo de ajudar o próximo, mas combine uma lógica produtiva com redenção coletiva não só é contraditória, como suspeita de portar algum tipo de vírus intelectual. Sobretudo, se considerarmos a mente juvenil ávida por soluções rápidas e totalizantes, que tornam a universidade um celeiro ideal para raposas disseminadoras de ideologias comprometidas com a submissão intelectual e a desinformação e a deturpação como métodos.[2]

Totalidade… Repare bem nesta palavra, que é uma categoria central para o método marxista, cuja capacidade de sedução reside na pretensão de enxergar a todos os problemas da vida social sob um método unívoco capaz de hierarquizá-los e apontar o processo causal (que, aliás, também é apenas um). Veja que se fôssemos realmente capazes de tal façanha, também teríamos o dom da predição. Quer coisa mais maravilhosa? Um método que não só explica tudo até aqui, como também é capaz de dizer tudo que tenderá ocorrer a partir de certo ponto na linha de tempo da história de toda humanidade. Qualquer semelhança com gurus do apocalipse (mas, em versão progressista-evolutiva), não é mera coincidência. Por inferência lógica, se pudermos atuar na raiz dos problemas (daí o apreço que os marxistas têm por serem chamados de radicais), as soluções se dariam automaticamente como um processo natural, após um momento de ruptura que, nada mais é senão a revolução.

Esquema de Fenneman

A síntese geográfica foi deturpada pelo conceito marxista de totalidade.

 

Se vocês repararam, as categorias marxistas de análise aqui elencadas como totalidade, processo natural, ruptura e revolução se encaixam em aspectos que atribuímos à Geografia e sua prima, a História.[3] Como eu já disse, os vários campos do saber que integram a síntese geográfica procuram abranger as indústrias, a produção agrícola, as cidades, os transportes, a demografia, a inter-relação dos estados nação (geopolítica) e, de outro lado, a geomorfologia, a hidrografia, a climatologia, a biogeografia etc. Portanto, uma filosofia que diga que tudo isso pode dar um bom mix caberá como uma luva às pretensões científicas de mostrar que a geografia é uma “ciência de respeito”. Afinal algo que ressentia muito os geógrafos era este aspecto de “colcha de retalhos” que fazia a geografia não parecer uma ciência una, mas sim um agregado de várias ciências.

A esta altura da prosa alguém poderia perguntar então, mas por que a medicina não tem este problema? Ora! Médicos não estão preocupados, em primeiro lugar, em serem reconhecidos no meio acadêmico, se não forem eficazes em sua lida. Pode até ser que um ou outro indivíduo deseje muito tal status, mas não será muito difícil atingi-lo sem a comprovada eficiência em suas áreas de atuação. Se não estão preocupados, em primeiro lugar, em salvar vidas, perde-las pode acabar com suas carreiras. Por outro lado, se amanhã ou depois, algum médico for reconhecido por inovar em determinado campo ou subcampo médico, isto é um bônus a sua profissão. Já para profissionais que atuam na área do planejamento (ambiental, urbano, regional etc.) como os geógrafos, a academia, em países como o Brasil, tem sido a porta de entrada para a atuação no mercado. Deveria ser o contrário e isto até está mudando, graças ao capitalismo e as tecnologias de sensoriamento remoto, mas deixemos isto para outro artigo… Enfim, vocês conseguem imaginar a cabeça de um estudante com a competição profissional com temas como, p.ex., o substrato rochoso quando confrontado com um geólogo? Que não conhece tanto sobre biomas quanto um biólogo? Que não sabe prever as intempéries com relativa precisão quanto um meteorologista? Ou, em outro campo, que não sabe analisar a produção industrial como um economista? Que não conhece detalhes agroecológicos como um agrônomo? Que não tem conhecimento técnico sobre urbanismo e infraestrutura como arquitetos e engenheiros? Fica difícil, né? Acontece que a particularidade da geografia foi (e é), justamente, não saber profundamente de seções do conhecimento, mas conhecer a integração desses elementos na análise territorial seja esta, local, regional ou global. Parece simples, mas numa época de valorização das especialidades, o marxismo ofereceu aos professores e alunos ressentidos com a competição uma resposta negacionista, isto é, “nada disso que está aí fazendo sucesso no mercado vale, porque estes saberes fazem parte da lógica do Capital, que é essencialmente espoliadora, destrutiva etc.” Qualquer semelhança com estelionatários ou a redenção espiritual via dízimo não seria mera coincidência.

(Continua…)

 

Referências:

CRISTALDO, Janer. “A universidade é um galinheiro onde raposas velhas vão caçar.” Disponível em: <http://cristaldo.blogspot.com.br/2014/04/a-universidade-e-um-galinheiro-onde.html>. Acesso em: 13 de abril de 2016.

EPL. “Carta aberta aos estudantes.” Estudantes Pela Liberdade – Grupo Henry Maksoud. Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/grupo-henry-maksoud/carta-aberta-aos-estudantes/1079085762153344>. Acesso em: 15 jun. 16.

JOHNSTON, R.J. Geografia e Geógrafos : a geografia humana anglo-americana desde 1945. São Paulo : DIFEL, 1986.

 

—————————

http://inter-ceptor.blogspot.com/
Fas est et ab hoste doceri – Ovídio

Se concorda, compartilhe.

 

[1] Sempre é bom lembrar que por “liberais brancos”, o autor, ainda que nascido no Reino Unido está se referindo aos liberais nos costumes ou na moral que, no contexto especificamente americano significaria algo como a esquerda atual. Para nós no Brasil, que herdamos a tradição linguística europeia, este sentido é raro e o termo liberal, normalmente apresenta sua conotação original da economia, em prol do livre-mercado.

[2] Em “A Universidade É Um Galinheiro Onde As Raposas Velhas Vão Caçar”, Janer Cristaldo pega uma raposa no pulo, isto é, o que Frei Betto disse em seu campo de caça, a Universidade:

“Ao falar de fracasso do socialismo na Europa e fracasso do capitalismo no ocidente, o frei exclui a Europa do Ocidente. Onde ficará então o Ocidente? Na Sibéria? Na Mongólia? É espantoso que um público universitário ouça uma sandice destas sem vaiar o palestrante. Se bem que quase nenhum universitário hoje, seja professor ou aluno, saiba dizer o que ocorreu em 9 de novembro de 1989.
Concluindo: o orgânico não precisa ser organizado. Não é permissível comparar um sistema artificial, distanciado do real, nascido de uma teoria utópica, com uma economia que surge espontaneamente, decorre da própria natureza humana e hoje é almejada por todos os países que um dia foram comunistas. Capitalismo não tem profeta, não tem livro nem é imposto, manu militari, por Estados ditatoriais. Há teorias sobre o capitaliso? Há. São teorias que tentam explicá-lo, não teorias que surgem do nada para criar um modelo de organização social.

La universidad es un acuário, donde las nenas ván pescar – dizem os espanhóis. Chez nous, é um galinheiro onde raposas velhas vão caçar” (http://cristaldo.blogspot.com.br/2014/04/a-universidade-e-um-galinheiro-onde.html. Acesso em 13 abr. 16).

[3] Dia 7 de abril passado, um grupo de estudantes e membros do Estudantes Pela Liberdade (EPL) em divulgação de seu segundo seminário na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foram hostilizados por dois professores, um de forma irônica e outro de forma acintosa. Para quem teve acesso ao vídeo divulgado de forma restrita na internet pode constatar no vocabulário deste segundo caso as categorias utilizadas e cujas premissas remetem ao puro marxismo, “analisamos o liberalismo sim, mas de forma histórica”. Para quem já está habituado aos cacoetes intelectuais desses professores sabe que por “forma histórica” se entende somente o que eles consideram como “história”. Outras visões simplesmente não existem e são amplamente hostilizadas ou alvo de chacota, para que seja autoatribuído ao autor desse escárnio uma pretensa superioridade, já que nunca a obtém em um debate ao vivo e civilizado. Aqui segue o link da carta aberta dos estudantes pelo incidente ocorrido: https://www.facebook.com/notes/grupo-henry-maksoud/carta-aberta-aos-estudantes/1079085762153344. Eu até tolero (embora não concorde com nada do que dizem) marxistas como forma de vida pensante, mas covardes me causam asco. E para quem viu o que ocorreu, entende o que quero dizer. Os professores em questão usaram do recurso vil (que tanto contestam em seus inimigos no poder) da autoridade conferida a eles para ensinar, no intuito de somente calar e subjugar o espírito livre de quem ousa discordar de suas estultícias.

[i] Professor de geografia licenciado pela UFRGS em 1987 e mestre em geografia humana pela USP em 2008. Co-autor do livro Não Culpe o Capitalismo.