Simón Bolívar, o Contrarrevolucionário

Simón Bolívar foi o líder revolucionário da independência de vários países sul-americanos que estavam sob o domínio colonial da Espanha. Angariou forte apoio popular contra as elites estabelecidas e tinha planos de construir uma América Latina unida, mais justa e igualitária. Certo?

Simon Bolivar contrarrevolucionario

Nem tanto. A História da América Latina revela que o processo de independência dos países sul-americanos foi bem menos “revolucionário” do que se imagina. Assim como outros líderes do processo de independência dos países da América Espanhola, Bolívar estava preocupado justamente em impedir uma Revolução como a que ocorrera na França e no Haiti.

A primeira metade do século XIX constituiu uma época crucial para a história latino-americana: em consequência das guerras de Independência, entre 1810 e 1830, nasceu a maioria das modernas repúblicas hispano-americanas. Entre as causas da emancipação da América Espanhola, o historiador José Manuel Roldán [2] identifica as seguintes:

  • A crise política da Espanha desde 1808.
  • O desejo das minorias brancas americanas (criollos) de assumir diretamente o poder.
  • O desgosto pelos abusos das autoridades coloniais.
  • O exemplo da Independência dos Estados Unidos.

O pensamento latino-americano do século XIX foi pautado na observação da nova realidade da América Latina, interpretada à luz, por um lado, de idéias iluministas como a exaltação do progresso, por outro, dos conceitos característicos do romantismo como a busca do original e próprio e também do positivismo com sua confiança no poder modernizador da educação.

O Pensamento Político de Simón Bolívar

Nascido em 24 de julho de 1783 na Venezuela, Bolívar foi o militar e político que se converteu desde 1813 no máximo condutor do processo de independência da América do Sul, motivo pelo qual é conhecido pela alcunha de O Libertador. Ele abordou a questão da identidade hispano-americana em sua Carta da Jamaica sob a forma de três preocupações principais [1]:

1. A Valorização do Passado

Os americanos, sob o sistema espanhol que está em vigor, e talvez com maior força que nunca, não ocupam outro lugar na sociedade que o de servos próprios para o trabalho, e quando muito o de simples consumidores; e ainda esta parte coagida com restrições chocantes […]; em fim, você quer saber qual é o nosso destino? Os campos para cultivar o anil, o grão, o café, a cana, o cacau e o algodão, as planícies solitárias para criar gado, os desertos para caçar bestas ferozes, as entranhas da terra para escavar o ouro que não pode saciar a esta nação [a Espanha] avarenta. Estávamos, como acabo de expor, abstraídos e, digamos assim, ausentes do universo no que é relativo à ciência do governo e administração do Estado. Jamais éramos vice-reis ou governadores, senão por causas muito extraordinárias; arcebispos e bispos poucas vezes; diplomatas nunca; militares, só em qualidade de subalternos; nobres, sem privilégios reais; não éramos, em fim, nem magistrados, nem financistas e quase nem mesmo comerciantes; tudo é contravenção direta de nossas instituições.[3]

Analisando através dos ideais do Iluminismo (tolerância e progresso), a situação da América do Sul era para Bolívar uma organização de modo muito rígido e quase feudal, baseada na opressão e na corrupção. O sistema colonial espanhol havia privado a população americana de todos os seus direitos e contribuído para a criação de uma identidade suscetível à adoção de novas formas de cativeiro.

Tão negativo era nosso estado que não encontro semelhante em nenhuma outra associação civilizada, por mais que recorra a série de eras e políticas de todas as nações. Pretender que um país tão felizmente constituído, extenso, rico e populoso seja meramente passivo não é um ultraje e uma violação dos direitos da humanidade?[3]

Segundo Bolívar tal valorização, ou revisão crítica do passado, era bastante para justificar a ruptura por parte da população latino-americana de todas as amarras de dependência com a metrópole, Espanha:

O hábito à obediência; um comércio de interesses, de luzes, de religião; uma recíproca benevolência; uma terna solicitude pelo berço e a glória de nossos pais; em fim, tudo o que formava nossa esperança vinha da Espanha. Daqui nascia um princípio de adesão que parecia eterno, não obstante a conduta de nossos dominadores relaxava esta simpatia, ou, melhor dizendo, este apego forçado pelo império da dominação. Ao presente sucede o contrário: a morte, a desonra, quanto é nocivo, nos ameaça e tememos; tudo o que sofremos desta desnaturada madrasta.[3]

Seu acertado otimismo com relação à irreversibilidade do processo de independência da América não difere muito daquele apresentado por Thomas Paine com relação à independência das colônias britânicas na América do Norte em sua obra Senso Comum:

O sucesso coroará nossos esforços porque o destino da América se fixou irrevogavelmente; o laço que a unia à Espanha está cortado; a opinião era toda sua força; por ela se estreitavam mutuamente as partes daquela imensa monarquia; o que antes as enlaçava, agora as divide; maior é o ódio que nos inspirou a Península, que o mar que nos separa dela; menos difícil é unir os dois continentes que reconciliar os espíritos de ambos os países.[3]

2. O Ideal Americanista

Bolívar definiu a identidade americana como um tipo de ambiguidade:

Nós somos um pequeno gênero humano; possuímos um mundo aparte, cercado por dilatados mares, novo em quase todas as artes e ciências, ainda que em certo modo velho nos usos da sociedade civil. […] nós, que apenas conservamos vestígios do que em outro tempo foi, e que por outro lado não somos nem índios nem europeus, senão uma espécie média entre os legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis: em suma, sendo nós americanos por nascimento e nossos direitos os da Europa, temos que disputar estes aos do país e que manternos nele contra a invasões dos invasores; assim nos achamos no caso mais extraordinário e complicado. […].[3]

Segundo ele, era muito difícil pressentir o futuro da América Latina:

Toda ideia relativa ao porvir deste país me parece aventurada. Pode-se prever, quando o gênero humano se achava em sua infância e rodeado de tanta incerteza, ignorância e erro, qual seria o regime que abraçaria para sua conservação? Quem se atreveria a dizer que tal nação será república ou monarquia, esta outra será pequena, e aquela grande?[3]

Não obstante, indicou três pilares sobre os quais, em sua opinião, descansava a unidade da América do Sul: a língua, a liberdade, a independência. Este pensamento político exposto por Bolívar em sua Carta da Jamaica constitui a chamada ideologia do primeiro hispano-americanismo. Este é o “bolivarianismo” original.

Esta primeira afirmação de identidade continental se define como hispana pelo único vínculo de importância que havia deixado a dominação espanhola: a língua. Em consequência a América Espanhola é vista como uma comunidade cultural, formada pelas repúblicas que haviam sido colônias espanholas. [1]

Sem dúvida, através deste projeto Simón Bolívar não só queria romper os laços entre América e Espanha, mas também rechaçar outras possíveis formas de colonialismo, como por exemplo o norte-americano. Seu hispano-americanismo opõe-se ao pan-americanismo, ou seja, a unidade americana sob hegemonia dos Estados Unidos.

3. A Formação do Estado

Os acontecimentos da Terra Firme nos provaram que as instituições perfeitamente representativas não são adequadas a nosso caráter, costumes e luzes atuais. Por que nossos compatriotas não adquiriram os talentos e as virtudes políticas que distinguem nossos irmãos do Norte, os sistemas inteiramente populares, longe de ser-nos favoráveis, temo muito que venham a ser nossa ruína. Desgraçadamente, estas qualidades parecem estar muito distantes de nós no grau que se requer; e pelo contrário, estamos dominados pelos vícios que se contraem sob a direção de uma nação como a espanhola, que só se sobresaiu em ferocidade, ambição, vingança e cobiça.[3]

Bolívar estava convencido de que os hispanoamericanos não estavam preparados para exercer a sua própria soberania. Reduzidos a escravos ao longo dos séculos, separados agora repentinamente da metrópole e extasiados com sua independência, não eram capazes de impor uma ordem baseada em fórmulas puramente democráticas e mergulharam o continente em lutas civis sangrentas que, levando os territórios recém libertos à anarquia e à fragmentação, favoreceram a ocupação do vácuo de poder por parte de tiranos autóctones.

É uma idéia grandiosa pretender formar de todo o mundo novo uma só nação com um só vínculo que ligue suas partes entre si e com o todo. Já que tem uma origem, uma língua, um costume e uma religião, deveria por conseguinte ter um só governo que confederasse os diferentes Estados que hão de formar-se; mas não é possível porque climas remotos, situações diversas, interesses opostos, características diferentes, dividem a América.[3]

Sublinhou também que antes que o povo pudesse ocupar o poder era preciso colocá-lo sob tutela e educá-lo. Em sua opinião, a extensão da educação se converteu em uma condição imprescindível para que os hispanoamericanos pudessem chegar a uma democracia plena.

Bolívar e sua Contrarrevolução

Se havia algo que Bolívar temia, eram as camadas populares. O Terror que se instaurara na França após a sua Revolução por si já era um aviso do que “o povo” era capaz quando saía do controle. Porém, com uma economia agrícola dependente de mão-de-obra escrava e uma população majoritariamente mestiça, a América Espanhola do tempo de Bolívar  não se parecia muito com a França: parecia, isso sim, com o Haiti.

San_Domingo
Batalha de Santo Domingo, quadro de Januário Suchodolski (1824) ilustrando a Revolução Haitiana (1791-1804).

A Revolução do Haiti, então colônia francesa (Saint-Domingue), que durou de 1791 a 1804, foi a primeira revolta de escravos a culminar com a formação de um Estado independente. Durante a revolução, a economia da Ilha, então a colônia mais próspera do mundo, foi quase totalmente destruída. Boa parte da oligarquia rural do país foi simplesmente massacrada ou fugiu para sobreviver.

Com a derrubada da Antiga Ordem francesa pela Revolução Francesa dois anos antes (1789), a elite de Saint-Domingue estava simplesmente isolada da metrópole e não tinha governo ao qual recorrer enquanto a situação não se resolvesse no continente. Esta situação favoreceu o cenário de terror que se instaurou no Haiti.

Sendo ele um mantuano, membro da aristocracia rural branca da América colonial, Bolívar e seus correligionários tinham motivos de sobra para não querer no continente a anarquia e o caos que varreram o Haiti:

Onde está lá (no Haiti) um exército de ocupação para impor a ordem? África? – nós teremos mais e mais da África. Eu não digo isso levemente, qualquer um com pele branca que escape será sorte.[6]

A mesma situação ameaçou as elites coloniais espanholas quando, em 1808, Napoleão Bonaparte invadiu a Espanha e pôs seu irmão José Bonaparte no trono após as sucessivas abdicações dos reis Carlos IV e Fernando VII. Diante do estado de acefalia política, os habitantes da América Espanhola começaram a criar suas próprias juntas de governo, declarando a sua independência e lutando contra as forças realistas que se opunham ao autogoverno. Era o único mecanismo capaz de salvar os americanos de novas edições das Revoluções Francesa e Haitiana.

Primera_junta_por_Francisco_Fortuny
Diante da iminente acefalia política da metrópole, juntas de governo local passaram a ser organizadas na América Espanhola. A primeira junta de governo argentina foi organizada em 1810 após a Revolução de Maio.

Apesar do racismo típico de sua época, ele estava certo em temer uma Revolução como a da França ou a do Haiti, e esta preocupação ele expressou em carta endereçada ao general Francisco de Paula Santander:

A igualdade legal não é o bastante para o povo, que quer uma igualdade absoluta, tanto no público quanto no doméstico. E depois irá querer a pardocracia, que é a inclinação natural e única, para exterminar depois a classe privilegiada.[7]

A “pardocracia” preocupava tanto a Bolívar, bem como seus familiares, que ele chegou a considerá-la como uma ideologia tão partidária quanto a anarquia, a monarquia e a democracia:

Minha irmã me diz que em Caracas há três partidos: Monárquicos, democráticos e pardocratas; que seja eu o Libertador ou morto é seu conselho. [Os amigos de Páez] foram primeiro federalistas, depois constitucionais e agora napoleônicos, logo não lhes sobrará grau a receber senão o de anarquistas, pardocratas ou degoladores.[8].

E ele não estava errado. Um dos importantes líderes da independência da América do Sul, o general Manuel Carlos Piar, era de fato um “pardo”. Os pardos estavam um degrau acima dos negros: eram livres e muitos constituíam mão-de-obra qualificada, mas não tinham posições de influência na sociedade.

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General Manuel Carlos Piar (1777-1817), “o Pardo”.

Na Venezuela, os pardos formavam um grupo que superava largamente os criollos (brancos) em termos numéricos, e Piar foi capaz de recrutá-los para seu exército. Por este motivo, Piar era um dos oficiais rebeldes mais temidos pela Coroa Espanhola: ele poderia dar início a uma verdadeira guerra de raças se quisesse, e assim transformar a Venezuela no próximo Haiti. Quando Simón Bolívar empregava os termos pardocracia e pardocratas, era Piar e seus correligionários que ele tinha em mente. Depois de muitas desavenças e relações conflituosas, Bolívar acabou mandando executar Piar em 1817 sob as acusações de deserção, sedição, insubordinação e conspiração.

Mas a obsessão de Bolívar com o avanço da “pardocracia” não foi contida com a morte Piar. Pelo contrário, ficou cada vez mais obsessivo com o avanço de outro rival: José António Páez.

Com a aproximação da vitória de seu adversário Páez na Venezuela, Bolívar declara em carta enviada a Antonio José de Sucre, grão-marechal de Ayacucho:

Na Venezuela tudo vai pior, porque o exército tem um partido e o povo outro. Páez é abominado pelo povo como chefe do exército, e a pardocracia vai ganhando terreno em tudo o que perdem os demais partidos.[9]

Cinco meses mais tarde confidenciaria a Francisco de Paula Santander:

A pardocracia triunfa em meio deste conflito geral. Em Guayaquil (que não é forte) faz repetidos e violentos ataques.[10]

Quatro anos mais tarde, pouco antes de sua morte, deixaria para o general Juan José Flores o testemunho de sua desilusão e a desconfiança quanto aos rumos da política na América do Sul:

V.S. sabe que eu tenho governado por vinte anos, e deles não tirei mais do que uns poucos resultados comprovados:

1º, a América é ingovernável para nós;
2º, quem serve a uma revolução ara no mar;
3º, a única coisa que se pode fazer na América é emigrar; 4º, este país cairá infalivelmente nas mãos da multidão desenfreada para depois passar a tiranetes quase imperceptíveis de todas as cores e raças;
5º, devorados por todos os crimes e extintos pela ferocidade, os europeus não se dignarão a conquistar-nos;
6º, se fosse possível que uma parte do mundo voltasse ao caos primitivo, esta seria a América em sua hora final.

A primeira revolução francesa fez degolar as Antilhas, e a segunda [refere-se às guerras de Napoleão] causará o mesmo efeito neste vasto continente. A súbita reação da ideologia exagerada nos trará quantos males nos faltavam, ou melhor, virão para completá-los. V.S. verá que todos irão entregar-se à torrente da demagogia, e que desgraçados os povos!, e desgraçados os governos![11]

Estes testemunhos revelam que, longe de aspirar a uma revolução, Bolívar estava era preocupado em impedir que a América do Sul virasse um Haiti de proporções continentais.

Republicano, mas nem tanto

Apesar da retórica anticolonial, para Bolívar a democracia era um ideal que não servia para a América. Logo após a independência da Venezuela em 1813, Bolívar escreve em carta a Manuel Antonio Pulido, governador de Barinas, que:

Jamais a divisão do poder estabeleceu e perpetuou governos; somente a sua concentração conseguiu infundir respeito numa nação e eu não libertei a Venezuela senão para implementar exatamente este sistema[4].

Em sua Carta de Jamaica de 1815, Bolívar denuncia a Venezuela como o exemplo mais claro “da ineficácia do modelo democrático e federal”[3]. Em discurso realizado em San Tomé de Angostura (1819), afirmou que um sistema de governo como o dos Estados Unidos não é apropriado para a América Latina. Em 1825, durante a constituinte da Bolívia propõe a ele próprio como presidente vitalício e o poder para escolher o vice-presidente, o qual deveria sucedê-lo, e justifica:

“[…] com esta providência se evita as eleições, que produzem grandes revezes nas repúblicas, a anarquia que é o luxo da tirania e o perigo mais imediato e terrível dos governos populares.[5]

Seu plano de governo não chegava nem perto do ideal democrático e representativo dos republicanos americanos. Provavelmente até a Monarquia Constitucional inglesa fosse um modelo mais republicano que aquele que Bolívar tinha em mente. No mesmo texto em que propõe um único governo para administrar a Venezuela e a Colômbia, além de um Congresso, propõe um Senado vitalício como a Câmara dos Lordes inglesa, e não abre mão de defender com todas as letras o “respeito supersticioso” evocado pelos prestígios e regalos monárquicos:

A veneração que professam os povos à magistratura real é um prestígio que influi poderosamente para aumentar o respeito supersticioso que atribui a essa autoridade. O esplendor do trono, da coroa, da púrpura, o apoio formidável que empresta a nobreza, as imensas riquezas que gerações inteiras acumulam em uma mesma dinastia, a proteção fraternal que reciprocamente recebem todos os reis são vantagens muito consideráveis que militam em favor da autoridade real e a fazem quase ilimitada. Essas mesmas vantagens são, por consequência, as que devem confirmar a necessidade de atribuir a um magistrado republicano uma soma maior de autoridade que a que possui um príncipe constitucional.[12]

Ou seja, na prática, um presidente deveria ter mais poder que um rei. A república bolivariana é um modelo de transição do Absolutismo para a República: quando houve o rompimento das colônias espanholas com a metrópole, a Espanha ainda não tinha passado por reformas liberais e portanto estava longe de ser uma Monarquia Constitucional.

Numa completa inversão da atitude dos revolucionários franceses, Bolívar não instituiu um Estado racionalista nem deu vazão a emoções anticlericais. No artigo VI de sua Constituição Boliviana, declara:

A Religião Católica, Apostólica, Romana, é da República, com exclusão de todo outro culto público. O Governo a protegerá e fará respeitar, reconhecendo o princípio de que não há poder humano sobre as consciências.[13]

Institui portanto um Estado confessional católico.

A Constituição também rechaça o federalismo, declarando a Bolívia um Estado republicano e unitário. O Presidente exerce cargo vitalício:

Artigo 77 – O exercício do Poder Executivo reside em um Presidente, vitalício, um Vice-presidente, e três Ministros de Estado.[14]

Mas não é qualquer um que pode ser presidente. Para ser presidente é necessário ser boliviano, católico, ter mais de trinta anos, ter prestado algum serviço importante à República e não ter sido jamais condenado pelos tribunais, nem mesmo por faltas leves[14].

Para obter a cidadania, os requisitos são bastante elitistas para a época, como a alfabetização. Por este motivo, a democracia seria representativa e indireta: haveriam representantes do povo, capazes de ler e escrever, e estes é que votariam e elegeriam os políticos. “Vadios” também não tem direito a cidadania e esta pode ser suspensa por dívida, vício em bebida ou jogo, mendicância ou corrupção[14].

A “Constituição Bolivariana”, apesar das grandes inovações republicanas e liberais, depositava muito poder nas mãos do Presidente que, na prática, era um imperador republicano.

Herança autoritária?

Bolívar morreu desprezado pelos seus antigos aliados, derrotado na disputa política pelo poder após as independências. Quem inventou a figura mítica do Bolívar unificador e harmonizador foi o governo de Fermin Toro, do Partido Conservador de Venezuela. Este é o imaginário Bolívar representante da Nação venezuelana, aquele cuja imagem foi apropriada por sucessivos governos autoritários e em torno do qual se ergueu um verdadeiro culto à sua pessoa, colocando-o no altar de toda a América Latina.

Bolivar cuadro

A adoção de Bolívar pela esquerda se difunde após o desenvolvimento da “teoria da dependência” – a crença de que a pobreza latino-americana decorre dos séculos de colonização espanhola e portuguesa e do imperialismo anglo-americano. Tal teoria, um misto de nacionalismo e marxismo, nunca explicou como uma revolução nacional se converte em uma revolução socialista. Para os crentes nesta teoria, libertação nacional e revolução socialista são parte de um mesmo processo. O antiamericanismo de Bolívar contribuiu decisivamente para a sua adoção.

Não é à toa que Hugo Chávez difundia tanto o livro “Veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeano, a magnum opus desta mentalidade simplista. A teoria da dependência legitima regimes autoritários, nacionalistas e socialistas, paternais protetores contra “os imperialistas” – reais ou imaginários – sempre prestes a nos atacar. Bolívar foi um republicano, liberal em certos aspectos e conservador em outros. Sua adoção por regimes autoritários fascistas, nazistas e socialistas, só evidencia que a desonestidade intelectual nunca sai de moda e que os “fascistas do bem” nunca cansam de distorcer a História para fazê-la caber nas suas teses simplistas.


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Leia mais:


Fontes:

[1] Rojas Mix, M. (1993). La cultura hisponamericana del siglo XIX.
[2] Roldán, J. M. (1989). Historia de España.
[3] Bolívar, Simón (1815). Carta de Jamaica (1815).
[4] Bolívar, Simón (1813). Carta a Manuel Antonio Pulido, gobernador de Barinas.
[5] Bolívar, Simón (1826). Discurso ao Congresso Constituinte da Bolívia.
[6] Lynch, John (2007). Simón Bolívar: A Life.
[7] Bolívar, Simón (1825). Carta de 7 de abril al general Francisco de Paula Santander.
[8] Bolívar, Simón (1826). Carta de 21 de febrero al General Francisco de Paula Santander.
[9] Bolívar, Simón (1826). Carta de 12 de mayo al gran mariscal Antonio Jose de Sucre.
[10] Bolívar, Simón (1826). Carta de 8 de octubre al general Francisco de Paula Santander.
[11] Bolívar, Simón (1830). Carta de 9 de noviembre al general Juan José Flores.
[12] Bolívar, Simón (1819). Discurso de Angostura.
[13] Quisbert, Ermo (2010). Primera Constitución Política de Bolivia 19 Noviembre 1826.
[14] Constitución Boliviana de 1826.

Referência:

Szymoniak, Ewelina. El Pensamiento Político de los Independentistas Latinoamericanos: Simón Bolívar, Andrés Bello.

Sete lições do Taiwan para a América Latina

De Carlos Alberto Montaner. Artigo traduzido da versão em espanhol disponível no site da ODLV (Organización por la Democracia Liberal en Venezuela).

O Taiwan é uma ilha menor que a Costa Rica e quase tão povoada quanto a Venezuela. Não tem petróleo nem riquezas naturais. Em 1949 era mais pobre que Honduras e mais tiranizada que o Haiti. Hoje é uma democracia estável duas vezes mais rica que a Argentina. Há alguma lição a aprender? Pelo menos sete. Suponho que Chávez, Correa, Ortega, Morales e Raúl Castro, os cinco cavaleiros do Apocalipse do Século XXI, deveriam prestar atenção.

Primeira lição.
Não há destinos imutáveis. Em quatro décadas, o Taiwan logrou superar a tradicional pobreza e despotismo que sofria o país há séculos até converter-se numa nação de primeiro mundo com um per capita de $37,900 anuais medido em paridade de poder de compra. Este milagre econômico se levou a cabo em apenas duas gerações. A pobreza ou a prosperidade são opcionais em nossa época.

Segunda lição.
A teoria da dependência é totalmente falsa. As nações ricas do planeta – o chamado centro – não designaram aos países da periferia econômica o papel de supridores ou abastecedores de matérias-primas para perpetuar a relação de vassalagem. Nenhum país (salvo a China continental) tentou prejudicar o Taiwan. Esta visão paranóica das relações internacionais é uma mentira. Não vivemos em um mundo de países algozes e países vítimas.

Terceira lição.
O desenvolvimento pode e deve ser para benefício de todos. Mas a divisão equitativa da riqueza não se obtém redistribuindo o que foi criado, senão agregando-lhe valor à produção paulatinamente. Os taiwaneses passaram de uma economia agrícola a outra industrial, mas o fizeram mediante a incorporação de avanços tecnológicos aplicados à indústria. O operário de uma fábrica de chips ganha muito mais que um camponês dedicado à produzir açúcar porque o que ele produz tem um valor muito maior no mercado. Isto explica porque o Índice Gini do Taiwan – o que mede as desigualdades – seja um terço melhor que a média latinoamericana. Só 1,16% dos habitantes deste país está sob o umbral da pobreza extrema.

Quarta lição.
A riqueza no Taiwan é fundamentalmente criada pela empresa privada. O Estado, que foi muito forte e intervencionista no passado, foi se retirando da atividade produtiva. O Estado não pode produzir eficientemente porque não está orientado a satisfazer a demanda, gerar benefícios, melhorar a produtividade e investir e crescer, senão para privilegiar a seus quadros e a fomentar a clientela política.

Quinta lição.
No muito citado começo de Ana Karenina, Tolstoy assegura que todas as famílias felizes se parecem umas às outras. A observação pode aplicar-se aos quatro dragões ou tigres asiáticos: Taiwan, Singapura, Coréia do Sul e Hong Kong. Ainda que tenham tomado caminhos parcialmente distintos até o topo do mundo, se parecem nestes cinco pontos:

  • Criaram sistemas econômicos abertos baseados no mercado e na propriedade privada.
  • Os governos mantém a estabilidade cuidando das variáveis macroeconômicas básicas: inflação, gastos públicos, equilíbrio fiscal e, por consequência, o valor da moeda. Com isto, facilitam a economia, o investimento e o crescimento.
  • Melhoraram gradualmente o Estado de Direito. Os investidores e os agentes econômicos contam com regras claras e tribunais confiáveis que lhes permitem fazer investimentos a longo prazo e desenvolver projetos complexos.
  • Abriram-se à colaboração internacional, entrando de cabeça na globalização, apostando na produção e exportação de bens e serviços que são competitivos, em lugar do nacionalismo econômico que postula a substituição de importações.
  • Focaram na educação, na incorporação da mulher no trabalho e no planejamento familiar voluntário.

Sexta lição.
O caso do Taiwan demonstra que um país governado por um partido único de mão forte, como era o caso do Kuomintang, pode evoluir pacificamente para a democracia e o multipartidismo sem que a perda de poder traga perseguições ou desgraças a quem até o momento deteve este processo. A essência da democracia é esta: a alternabilidade e a existência de vigorosos partidos de oposição que auditam, revisam e criticam o trabalho do governo. A imprensa livre é benéfica.

Sétima lição.
Em essência, o caso taiwanês confirma o valor superior da liberdade como atmosfera em que se desenvolve a convivência. A liberdade consiste em poder tomar decisões individuais em todos os âmbitos da vida: o destino pessoal, a economia, as tarefas cívicas, a família. Não há contradição alguma entre a liberdade e o desenvolvimento. Quanto mais livre é uma sociedade mais prosperidade será capaz de alcançar. Para isto, claro, é imprescindível que a imensa maioria das pessoas, encabeçadas pela classe dirigente, se submetam voluntária e responsavelmente ao império da lei.

Artigo original em espanhol aqui.