Karl Popper e a liberdade econômica irrestrita

Acredito que o aspecto injusto e desumano de um ‘sistema capitalista’ irrestrito como o descrito por Marx é inquestionável. Mas isto pode ser interpretado à luz do que chamamos, no capítulo anterior, de paradoxo da liberdade. Vimos que a liberdade acaba consigo mesma se for ilimitada. Liberdade ilimitada significa que o forte é livre para agredir o fraco e roubar sua liberdade. Por isto que exigimos que o estado limite a liberdade até certo ponto, para que a liberdade de todos seja protegida pela lei. Ninguém deveria estar à mercê dos outros, mas todos deveríamos ter o direto à proteção do estado. Acredito que estas considerações, originalmente aplicadas ao contexto da força bruta e da intimidação física, devem ser aplicadas também ao contexto econômico.

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Mesmo que o estado proteja seus cidadãos de sofrer agressão física (como de fato se protege, em princípio, sob um sistema de capitalismo irrestrito), seria contraproducente se ele falhasse em protegê-los do abuso de pdoer econômico. Nesta condição, o economicamente mais forte continua livre para agredir o economicamente mais fraco, e roubar sua liberdade. Sob estas circunstâncias, a liberdade econômica irrestrita é tão contraproducente quanto a liberdade física irrestrita, e o poder econômico pode ser tão perigoso quanto a violência física, pois aqueles que possuem um excedente de comida podem forçar os famintos a aceitar ‘livremente’ a servidão sem precisar recorrer à violência. E assumindo que o estado limita suas atividades à supressão da violência (e a proteção da propriedade), uma minoria economicamente forte pode assim explorar a maioria dos economicamente fracos.

Se esta análise está correta, então a solução é clara. A solução deve ser política: uma solução similar à que adotamos contra a violência física. Devemos construir instituições sociais, reforçadas pelo poder do estado, para a proteção dos economicamente fracos frente aos economicamente fortes. O estado deve garantir que ninguém necessite entrar em um acordo desigual por medo da foma ou da ruína econômica.
Isto, é claro, significa que o princípio da não-intervenção, de um sistema econômico irrestrito, deve ser abandonado; se desejamos salvaguardar a liberdade, devemos exigir que a política de liberdade econômica irrestrita seja substituída por uma intervenção econômica planejada do estado. Devemos exigir que o capitalismo irrestrito dê lugar a um intervencionismo econômico. E isto é precisamente o que aconteceu.


Fonte:
Karl Popper, ‘The Open Society and Its Enemies’, capítulo 17.
Tradução livre de Renan Felipe dos Santos.


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Historicismo, luta de classes e a impotência política marxista: uma breve análise da crítica popperiana

Introdução

O artigo terá o objetivo de explicar, ainda que brevemente, como o projeto político popperiano pautado na defesa da sociedade aberta, na valorização do debate racional e de uma política institucionalizada vai de encontro ao determinismo sociológico de Marx, segundo o qual a sociedade está refém de leis preconcebidas em seu curso de desenvolvimento histórico.

Marx acredita que toda a forma de governo, seja tirânico ou mesmo democrático, é uma ditadura de classe ou forma de subjugação da classe operária. Segundo o professor Júlio Cesar R. Pereira, essa concepção do filósofo alemão é fruto de “[…] uma situação de capitalismo selvagem que coonestava uma extremada exploração da classe operária” (PEREIRA, 1993, p.143).

Para Popper, essa forma de capitalismo acaba por conduzir ao chamado “paradoxo da liberdade” (PEREIRA, 1993, p.143). Esse paradoxo só será neutralizado a partir de um Estado que imponha restrições à liberdade com base na intersubjetividade desta e de uma forma que também evite o outro extremo, o intervencionismo absoluto. Para tal exposição, iremos nos centrar na introdução do volume 1 e nos capítulos 13 e 16 do volume 2 de A Sociedade Aberta e seus inimigos (1974) e no capítulo XIV de Epistemologia e Liberalismo (1993).

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Karl Popper: A sociedade aberta e os seus inimigos

O governo representativo ou popular surge, para Popper, como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos. O positivismo ético, alertou também Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não conhece limites morais.

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Karl Raimund Popper nasceu em 1902, em Viena, e faleceu em 1994 em Kenley, Sul de Londres. Bertrand Russell e Isaiah Berlin consideraram que a sua crítica ao marxismo fora devastadora e definitiva. Russell chegou mesmo a dizer que o livro de Popper “The Open Society and Its Enemies”, de 1945, era uma espécie de Bíblia das democracias ocidentais.

É um fato que, em inúmeras democracias ocidentais, os líderes políticos do centro-esquerda e de centro-direita reclamaram a influência popperiana. Na Alemanha Federal, o chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o chanceler democrata-cristão Helmut Khol prefaciaram obras sobre ou de Karl Popper. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, entre outros, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o prazer de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Sir Karl, em Kenley, em 1992 e 1993, respectivamente.

Winston Churchill
Até 1935, Karl Popper viveu basicamente em Viena de Áustria. Depois de uma formação acadêmica muito variada e de uma esporádica passagem pelo marxismo, quando tinha dezesseis anos, doutora-se em Filosofia em 1928. Em 1934 publica o seu primeiro livro, que se tornaria um clássico da filosofia da ciência: “A Lógica da Descoberta Científica”.
Apesar de ter sido publicado em alemão, o livro teve impacto imediato na Inglaterra e gerou vários convites para palestras por parte de universidades inglesas. Daí resultou um périplo inglês de nove meses, em 1935-1936. Esses nove meses “tinham sido uma revelação e uma inspiração”, conta Popper na sua “Autobiografia Intelectual” [Esfera do Caos, 2008]: “A honestidade e a decência das pessoas e o seu forte sentimento de responsabilidade política deixaram em mim a mais forte impressão.”

Ainda assim, Popper observou com preocupação que, mesmo na Inglaterra, ninguém nessa época parecia compreender a ameaça de Hitler – com exceção da voz corajosa e isolada de Winston Churchill. Desde essa altura, Karl Popper tornou-se um admirador incondicional de Churchill.

Nova Zelândia
Em Fevereiro de 1937, Popper embarcou para a Nova Zelândia, onde obtivera uma vaga de professor na Christ Church. Tinha acabado de recusar um convite da Cambridge em benefício do seu amigo Fritz Waisman, já nessa época perseguido pelos nazis.

Apesar da tremenda carga de horas letivas a que foi submetido na Nova Zelândia, Popper lançou-se ao trabalho e produziu duas obras magistrais – “A Pobreza do Historicismo” e “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos” – entre 1938 e 1943. Apresentou-os como o seu “esforço de guerra” contra os totalitarismos nazi e comunista.

Regresso a Londres
Ainda em 1945, Karl Popper recebe um convite de Friedrich Hayek para lecionar na London School of Economics. Desta vez o casal Popper aceitou o convite sem pestanejar. Em Janeiro de 1946 chegavam a Inglaterra, onde permaneceriam até ao final da vida, tornando-se orgulhosos e felizes cidadãos britânicos.

Em 1964, Karl Popper receberia da rainha o título de Sir. Faleceu em 1994, na sua residência de Kenley, no Sul de Londres, onde tive o privilégio de o visitar regularmente entre 1990 e 1994, durante o meu doutoramento em Oxford, ao qual me candidatara com o seu apoio.

Todos os cisnes são brancos?
Na base da filosofia do conhecimento de Popper, originalmente apresentada no seu livro “Lógica da Descoberta Científica”, está uma observação muito simples que é costume designar por “assimetria dos enunciados universais”. Esta assimetria reside no fato de que, enquanto nenhum número finito de observações (positivas) permite validar definitivamente um enunciado universal, basta uma observação (negativa) para o invalidar ou refutar. Por outras palavras, e citando um exemplo que se tornou clássico: por mais cisnes brancos que sejam encontrados, nunca podemos ter a certeza de que todos os cisnes são brancos (pois amanhã alguém pode encontrar um cisne preto). Em contrapartida, basta encontrar um cisne preto para ter a certeza de que é falso o enunciado universal “todos os cisnes são brancos”.

Karl Popper fundou nesta assimetria a sua teoria falibilista do conhecimento. Argumentou que o conhecimento científico não se assenta no chamado método indutivo, mas numa contínua interação entre conjecturas e refutações. Enfrentando problemas, o cientista formula teorias conjecturais para tentar resolvê-los. Essas teorias serão então submetidas a teste. Se forem refutadas, serão corrigidas (ou simplesmente eliminadas) e darão origem a novas teorias, que por sua vez voltarão a ser submetidas a teste. Mas, se não forem refutadas, não serão consideradas provadas. Serão apenas corroboradas, admitindo-se que no futuro poderão ainda vir a ser refutadas por testes mais rigorosos. O nosso conhecimento é, por isso, fundamentalmente conjectural e progride por ensaio e erro: “Sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Mas podemos aprender com eles.”

A superstição marxista
Entre as múltiplas consequências desta visão do progresso do conhecimento encontram-se duas que terão particular importância para a filosofia política e moral de Popper.

Em primeiro lugar, o chamado critério de demarcação entre asserções científicas e não científicas: serão asserções científicas apenas aquelas que sejam susceptíveis de teste, isto é, de refutação.

Este ponto será de crucial importância para a crítica de Popper ao chamado historicismo marxista. Marx anunciara como lei científica da história a inevitável passagem do capitalismo ao socialismo e depois ao comunismo. Mas não definira qualquer horizonte temporal para essa previsão. Isso na verdade significa que a previsão não é susceptível de teste. Trata-se por isso apenas de uma profecia, uma superstição em nome da ciência.

Sociedade aberta
Uma segunda consequência da epistemologia de Popper reside na centralidade da liberdade de crítica. A possibilidade de criticar uma teoria, de a submeter a teste e de tentar refutá-la, é condição indispensável do progresso do conhecimento.
É aqui que Popper vai fundar a distinção fundamental entre sociedade aberta e sociedade fechada. Na primeira existe espaço para a liberdade de crítica e para a gradual alteração ou conservação de leis e costumes através da crítica racional. Na segunda, pelo contrário, leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à avaliação pelos indivíduos. No capítulo 10 da obra “A Sociedade Aberta e os seus Inimigos” [Fragmentos, 1990], Karl Popper desenvolve uma poderosa e emocionada defesa do ideal da sociedade aberta, fazendo recuar as suas origens à civilização comercial, marítima, democrática e individualista do iluminismo ateniense do século V a. C. – que o autor contrasta duramente com a tirania coletivista e anticomercial de Esparta.

Contra a soberania popular
Sendo um intransigente defensor das democracias liberais, Popper é, contudo, um crítico contundente das teorias usualmente associadas à democracia, em particular a herdada de Rousseau – que entende a democracia como o regime fundado na chamada “soberania popular”.

Popper começa por observar que esta teoria da “soberania popular” se inscreve numa tradição de definição do melhor regime político em termos da resposta à pergunta “quem deve governar?”. Mas esta pergunta, prossegue o autor, conduzirá sempre a uma resposta paradoxal. Se, por exemplo, o melhor regime for definido como aquele em que um – talvez o mais sábio, ou o mais forte, ou o melhor – deve governar, então esse um pode, segundo a definição do melhor regime, entregar o poder a alguns ou a todos, dado que é a ele que cabe decidir ou governar.

Chegamos então a um paradoxo: uma decisão conforme à definição de melhor regime conduz à destruição desse mesmo regime. Este paradoxo ocorrerá qualquer que seja a resposta à pergunta “quem deve governar?” (um, alguns, ou todos reunidos em coletivo) e decorre da própria natureza da pergunta – que remete para uma resposta sobre pessoas e não sobre regras que permitam preservar o melhor regime.

Estado limitado
A teoria da democracia de Popper vai então decorrer da resposta a outro tipo de pergunta: não sobre quem deve governar, mas sobre como evitar a tirania, como garantir a mudança de governo sem violência. O meio para alcançar este objetivo residirá então num conjunto de regras que permitam a alternância de propostas concorrentes no exercício do poder e que impeçam que, uma vez chegadas ao poder, qualquer delas possa anular as regras que lhe permitiram lá chegar.

O governo representativo ou democrático surge então como uma, e apenas uma, dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as garantias legais – numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei. Nesta perspectiva, o governo representativo ou popular surge como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos.

Inimigos da sociedade aberta
Entre os inimigos da sociedade aberta, Popper aponta o positivismo ético, um elemento fundamental, embora pouco notado, do marxismo e do nazismo. O positivismo ético “sustenta que não existirem outras normas para além das leis que foram realmente consagradas (ou positivadas) e que portanto têm uma existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação”.

O problema óbvio com esta teoria é que ela impede qualquer tipo de desafio moral às normas existentes e qualquer limite moral ao poder político. Se não existem padrões morais além dos positivados na lei, a lei que existe é a que deve existir. Esta teoria conduz ao princípio de que a força é o direito. Como tal, opõe-se radicalmente ao espírito da sociedade aberta: esta funda-se, como vimos, na possibilidade de criticar e gradualmente alterar ou conservar leis e costumes. O positivismo ético, ao decretar a inexistência de valores morais para além dos contidos nas normas legais realmente existentes, conduz à desmoralização da sociedade e, por essa via, à abolição do conceito de liberdade e responsabilidade moral do indivíduo.

Este é talvez um dos aspectos mais incompreendidos da obra de Popper. A ideia de “abertura” foi captada por modas e teorias intelectuais relativistas que Popper na verdade condenara como inimigos da sociedade aberta. O positivismo ético, alertou Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não reconhece limites morais.


Por João Carlos Espada, adaptações para o português do Brasil por Renan Felipe dos Santos. Publicado originalmente no site português iOnline. Para ler o artigo original, clique aqui.


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Karl PopperA Sociedade Aberta e Seus Inimigos vol. 1
Karl Popper – A Sociedade Aberta e Seus Inimigos vol. 2