Sobre a Crise Financeira de 2008

too-big-to-failFiz há alguns dias um pequeno artigo, bem resumido e simples, falando sobre as verdadeiras causas da crise financeira americana de 1929. Em um dos compartilhamentos do texto vi uma discussão entre dois rapazes na qual um deles dizia concordar com o fato de que a crise de 29 não foi causada pelo liberalismo, mas que acredita que a crise de 2008 foi. A fim de esclarecer também esta questão, resolvi compartilhar um ótimo texto que já li sobre o assunto, no site do IMB. O texto é grande, mas vale à pena a leitura. O texto originalmente foi publicado neste link.

Como ocorreu a crise financeira americana

por Leandro Roque, quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Segundo a imprensa mundial, este mês de setembro de 2013 marca o aniversário de 5 anos da crise financeira americana.  Mas a crise, no entanto, começou realmente um ano antes, em agosto de 2007, quando correntistas correram ao banco britânico Northern Rock para sacar seu dinheiro, levando o banco à falência.  Esta foi a primeira corrida bancária em grande escala ocorrida desde 1930.

São inúmeros os analistas, comentaristas e, principalmente, acadêmicos que já se aventuraram a dar seus vaticínios sobre a crise financeira americana.  No entanto, ausente de todos os comentários está aquele componente indispensável para toda e qualquer análise econômica minimamente séria e sensata: a imparcialidade.  E presente em todos os comentários está aquele componente do qual, hoje em dia, ninguém abre mão: a propaganda ideológica.

A melhor maneira de se entender corretamente e de modo fácil todas as nuanças da crise financeira americana é fazendo uma narração cronológica e desideologizada dos eventos.  Caberá ao leitor, no final, concluir qual dos dois lados tem razão: se aqueles que dizem que tudo foi causado por uma falta de regulamentação ou se aqueles que dizem que tudo foi causado por excesso de intervenção estatal.

A tempestade perfeita

A crise financeira americana — a qual foi gerada pelo estouro de uma grande bolha imobiliária — teve características grandiosas e espetaculares simplesmente porque ela apresentou uma combinação de elementos até então inédita na história de qualquer economia mundial.  Nem mesmo a colossal crise financeira japonesa do início da década de 1990 — que também foi gerada pelo estouro de uma bolha imobiliária — apresentou uma conjunção tão harmoniosa de elementos a ponto de produzir um estrago semelhante.

Comecemos nossa análise com um gráfico que mostra o histórico da evolução dos preços dos imóveis americanos.  Mais especificamente, o gráfico mostra a mediana dos preços de venda de imóveis novos.

Gráfico 1: mediana dos preços de venda de imóveis novos

Gráfico 1

O gráfico traz vários detalhes interessantes.  Até o início da década de 1970, quando os EUA ainda viviam sob alguns resquícios de padrão-ouro, os preços dos imóveis permaneceram praticamente constantes.  Durante a década de 1970, os preços praticamente duplicaram, mas isso foi efeito da alta inflação monetária ocorrida naquela década (que ficou conhecida como a década perdida dos EUA), e não especificamente de uma bolha.  Já durante a década de 1980 houve um mini-bolha, a qual estourou no início da década de 1990 (aficionados por economia podem pesquisar sobre a retração do mercado imobiliário americano nesta época).

A partir de 1993, início do governo Clinton, os preços voltaram a subir continuamente.  E aceleraram vertiginosamente a partir de 2001 até entrarem em colapso em 2008.

Logo, partindo-se deste gráfico, dois eventos devem ser analisados:

1) O que gerou a ascensão de preços a partir de 1993?

2) O que gerou a súbita aceleração a partir de 2003?

A década de 1990

Foi na década de 1990 que duas políticas governamentais voltadas exclusivamente para o setor imobiliário — mais especificamente, para aumentar o número de proprietários de imóveis — foram intensificadas.  Digo “intensificadas” porque estas políticas já existiam desde a década de 1970, mas foi somente na década de 1990 que elas ganharam poder total.

Quais foram estas políticas?

Fannie Mae e Freddie Mac

De um lado, havia duas empresas nominalmente privadas, mas que atendiam exclusivamente aos desejos do governo federal.  Estas duas empresas se tornaram mundialmente conhecidas em 2008, quando houve a quebradeira: trata-se da Federal National Mortgage Association (popularmente conhecida como Fannie Mae) e a Federal Home Loan Mortgage Corporation (popularmente conhecida como Freddie Mac).

Essas duas empresas foram criadas pelo Congresso americano e são oficialmente conhecidas como “empresas apadrinhadas pelo governo”, pois usufruem vários privilégios concedidos pelo governo.  Primeiro, vamos entender o que elas fazem; depois, veremos por que elas são assim conhecidas.

Fannie Mae e Freddie Mac são empresas voltadas exclusivamente para o mercado imobiliário.  Mais especificamente, elas são empresas que existem para garantir liquidez ao mercado de hipotecas.  Elas não emprestam dinheiro para compradores de imóveis; elas apenas compram estes empréstimos dos bancos.

Funciona assim: um americano vai a um banco comercial qualquer e pede um empréstimo para comprar um imóvel.  Ato contínuo, o banco cria dinheiro eletrônico e acrescenta estes dígitos eletrônicos na conta do tomador de empréstimo, que agora utilizará este dinheiro para comprar um imóvel.  Por uma questão de regra contábil, sempre que um banco concede um empréstimo, ele está criando um ativo e um passivo: o ativo é o valor do empréstimo, o passivo é o dinheiro que ele deu ao tomador de empréstimo.

Atenção, pois esta parte é crucial: se um banco concede um empréstimo, o valor do seu ativo aumenta.  Quanto mais empréstimos ele concede, maior o valor do seu ativo (e, consequentemente, do seu passivo).  Por uma questão de regulamentação bancária (tanto do Banco Central americano quanto do Banco da Basileia), há um limite para o crescimento destes ativos.  Em termos técnicos, os ativos têm de manter uma proporção máxima em relação ao patrimônio líquido do banco.  Portanto, um banco não pode sair concedendo empréstimos a rodo, pois ele rapidamente atingiria este limite determinado.

E é exatamente nesse ponto que Fannie e Freddie entram em cena.  A função destas empresas era comprar dos bancos comerciais exatamente estes empréstimos (títulos hipotecários) que eles concediam para compradores de imóveis.

Ou seja: quando um banco comercial concedia um empréstimo imobiliário, ele colocava em seus ativos o valor total do empréstimo.  Mas se ele vendesse esse ativo (título hipotecário) para uma terceira parte, este ativo sairia de seus livros contábeis, ele receberia de volta a quantia que emprestou (na verdade, receberia um valor mais alto) e, em seguida, estaria livre para voltar a fazer novos empréstimos sem ultrapassar aquele limite entre ativos e patrimônio líquido estabelecido pelo Banco Central.

Em resumo: Fannie e Freddie, ao comprarem as carteiras de empréstimos imobiliários dos bancos, permitiam que os bancos dessem continuidade aos seus empréstimos.  Em outras palavras, após um banco conceder um empréstimo para um comprador de imóveis, ele podia vender este empréstimo para Fannie ou Freddie.  Ato contínuo, este empréstimo não mais estaria nos livros contábeis do banco, o qual estaria agora livre para fazer novos empréstimos.

Uma vez em posse dos títulos hipotecários, Fannie e Freddie agora eram as responsáveis pelos empréstimos.  A relação agora era entre elas e os tomadores de empréstimos imobiliários.  Enquanto estes continuassem pagando suas hipotecas, Fannie e Freddie continuariam tendo um fluxo de caixa.  Se os tomadores de empréstimos dessem o calote, Fannie e Freddie teriam enormes prejuízos.  Seus títulos hipotecários seriam remarcados para um valor zero e o patrimônio líquido de ambas seria severamente afetado.

Observe que os bancos que fizeram os empréstimos originais estão fora da jogada.  Eles não mais são os responsáveis pelo empréstimo e não mais lidam com o tomador do empréstimo.  Eles estão livres para voltar ao mercado imobiliário e conceder novos empréstimos.  Era uma espécie de moto-perpétuo.

Fannie e Freddie tinham duas opções: elas podiam manter em suas carteiras os empréstimos que compraram dos bancos (e, assim, aufeririam as receitas) ou podiam empacotar esses empréstimos e vender para investidores ao redor do mundo.  Esses empréstimos imobiliários vendidos por Fannie e Freddie para os investidores ao redor do mundo ficaram conhecidos como “títulos lastreados em hipotecas” (as famosas mortgage-backed securities).

Tradicionalmente, quando uma pessoa pega um empréstimo para comprar um imóvel, cria-se uma dívida entre ela e o banco.  Se a pessoa irá honrar sua dívida ou não, é problema do banco.  No cenário americano, Freddie e Fannie fizeram com que os bancos não mais se preocupassem com nada disso, pois eles sabiam que, tão logo concedessem um empréstimo imobiliário, Fannie e Freddie estavam lá para comprar este empréstimo a um valor acima do montante concedido.

Desnecessário dizer que todo este processo — ao facilitar enormemente a compra de imóveis — gerou muito mais empréstimos imobiliários do que normalmente ocorreria.  Este direcionamento artificial de recursos para o mercado imobiliário aditivou os preços dos imóveis.

Freddie e Fannie usufruíam uma linha especial de crédito junto ao Tesouro americano, no valor de US$2,25 bilhões.  Esta garantia implícita de proteção conseguiu atrair um contínuo financiamento de investidores — que investiam dinheiro nestas empresas e compravam seus títulos lastreados em hipotecas —, pois estes investidores sabiam que, caso a coisa degringolasse, Fannie e Freddie seriam socorridas pelo governo americano.

(Para se ter uma ideia da amplitude destas empresas, em setembro de 2008, quando o governo americano efetivamente nacionalizou ambas as empresas, elas detinham metade das hipotecas do país e praticamente 75% das hipotecas recém-concedidas.)

Por fim, vale ressaltar que Fannie e Freddie estavam profundamente envolvidas em politicagem.  A Fannie, mais especificamente, foi utilizada por políticos democratas que queriam diminuir as exigências que a empresa impunha para conceder empréstimos a pessoas de mais baixa renda.  Tudo em nome de estar ajudando os “necessitados”.  Em setembro de 1999, ninguém menos que o próprio The New York Times publicou uma reportagem dizendo que a Fannie Mae estava afrouxando as exigências de crédito para as hipotecas que ela comprava dos bancos.  Segundo o próprio Times, a iniciativa era perigosa porque iria

estender hipotecas para indivíduos cujo histórico de crédito não são bons o suficiente para se qualificarem para empréstimos convencionais. […]  A Fannie Mae tem estado sob intensa pressão do governo Clinton para dar sustentação a hipotecas de pessoas de renda baixa e moderada. […] [Embora] as novas hipotecas sejam estendidas para todos os potenciais tomadores de empréstimos, [um dos objetivos do programa é] aumentar o número de proprietários de imóveis entre as minorias e os indivíduos de baixa renda, os quais tendem a apresentar um histórico de crédito pior que os dos brancos não-hispânicos.

Ao se aventurar, mesmo que temporariamente, nesta nova área de empréstimos, a Fannie Mae está assumindo riscos consideráveis.  […] Esta corporação subsidiada pelo governo pode vir a enfrentar problemas caso haja uma recessão econômica, o que levará o governo a socorrê-la.

Ou seja, até mesmo o The New York Times já havia percebido o risco envolvido nessa nova empreitada.

Não é o intuito deste artigo entrar em detalhes sobre o funcionamento de Freddie e Fannie, pois isso tomaria o espaço de um livro.  Há uma ampla literatura dedicada exclusivamente ao assunto (neste site há inclusive um artigo dedicado exclusivamente a estas empresas) e nada do que foi dito aqui é controverso.  Políticos democratas utilizaram estas agências para garantir que minorias e pessoas de baixa renda, sem nenhum histórico de crédito, conseguissem empréstimos para comprar a casa própria.  Estas seriam as mesmas pessoas que, como veremos mais abaixo, começaram a dar calotes nos empréstimos.

CRA e ações afirmativas

Mas apenas Fannie e Freddie não seriam capazes de estimular todo o mercado imobiliário, e muito menos o mercado subprime (subprime se refere a tomadores de empréstimo com histórico de crédito ruim).  É aí que entra em cena a segunda política governamental: ação afirmativa para empréstimos.

Fannie e Freddie não eram as únicas entidades utilizadas para reduzir os padrões de empréstimos.  Agências governamentais de vários tipos começaram a pressionar os bancos a fazerem empréstimos mais arriscados, e tudo em nome da “igualdade racial”.  Caso se recusassem a assumir este comportamento temerário, os bancos poderiam ser legalmente processados por discriminação e racismo.

Em 1992, um estudo feito pela sucursal do Federal Reserve de Boston afirmou ter encontrado claras evidências de que, mesmo levando-se em conta as diferenças na capacidade creditícia de cada indivíduo, as minorias recebiam menos empréstimos do que os brancos.  Tal estudo foi considerado como definitivo por aqueles já dispostos a acreditar em sua conclusão: a saber, que os bancos americanos discriminavam negros e hispânicos — mas, curiosamente, não discriminavam os asiáticos, que recebiam ainda mais empréstimos do que os brancos.

Este estudo ressuscitou uma lei conhecida Community Reinvestment Act.  Trata-se de uma lei criada ainda no governo de Jimmy Carter, no final da década de 1970, e que foi plenamente revigorada no governo Clinton.  Esta lei deixou os bancos à mercê de processos por discriminação caso eles não emprestassem para minorias em um volume suficientemente alto, que satisfizesse as autoridades.

De acordo com as regras do Community Reinvestment Act (CRA), se um banco quisesse fazer qualquer alteração em suas operações comerciais — fusão, abertura de uma filial, entrada em uma nova linha de negócios —, ele deveria primeiro provar aos reguladores que ele, o banco, já fez uma quantidade “suficiente” de empréstimos aos mutuários preferidos do governo — no caso, minorias e pessoas de baixa renda.

E, a partir de 1995, o governo americano passou a pressionar os bancos para que fizessem empréstimos sem que pudessem verificar critérios minimamente prudentes, como histórico de crédito do tomador de empréstimo, seu histórico de poupança e a magnitude do pagamento da hipoteca em relação à sua renda.  Os bancos não podiam nem sequer verificar a renda do mutuário.  Adicionalmente, o Banco Central americano havia dito aos bancos que a simples participação deste mutuário em programas de aconselhamento de crédito, muitos dos quais são financiados com fundos federais, poderia ser usada como “prova” da capacidade desse mutuário de baixa renda honrar seus pagamentos hipotecários.  Em outras palavras, os reguladores bancários federais exigiram que os bancos fizessem empréstimos ruins baseando-se em padrões de crédito inexistentes.

Vale novamente enfatizar que nada do que foi escrito até agora é matéria de controvérsia ou de dúvidas.  Toda a literatura a respeito do CRA e das políticas de ação afirmativa impostas por este decreto são de conhecimento público.  Para detalhes mais profundos sobre o tema, recomendo este artigo, bem como todas as suas referências bibliográficas.

A década de 2000 — a intensificação de tudo

Até aqui, falamos apenas sobre duas políticas governamentais voltadas para estimular a aquisição de imóveis: as agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac, e o decreto CRA.

Estas duas políticas governamentais ajudam a explicar por que houve uma bolha imobiliária, mas elas por si sós não justificam toda a amplitude da bolha imobiliária.  Adicionalmente, como mostrado no gráfico 1, foi só a partir da década de 2000 que os preços dos imóveis realmente dispararam.  Por quê?

Incentivos à especulação

Em primeiro lugar, é crucial entender a questão dos incentivos.  A partir do momento em que os critérios exigidos para se conceder empréstimos imobiliários foram artificialmente relaxados por imposição do governo americano, e a partir do momento em que o próprio governo adotou políticas que estimulavam a aquisição de imóveis, foi apenas uma questão de tempo para que o setor imobiliário se tornasse um território propício à especulação.

O aumento na demanda por imóveis — estimulado pelo acesso artificialmente facilitado aos financiamentos — gerou um inevitável e contínuo aumento nos preços dos imóveis.  Este aumento contínuo, por sua vez, produziu o “inesperado” efeito de atrair especuladores para o mercado imobiliário.  Tornou-se extremamente comum um indivíduo adquirir um empréstimo, comprar uma casa, fazer alguns aprimoramentos nesta casa e, apenas um ano depois, revendê-la a um preço muito maior, entregando a hipoteca para o novo comprador que, seis meses depois, faria a mesma coisa que seu antecessor.  Ou seja, comprar um imóvel havia virado um investimento altamente rentável e de ganho certo.

Aqueles que não compravam com a intenção de revender passaram a utilizar suas casas como um caixa eletrônico: sempre que o imóvel se valorizava, o indivíduo ia ao banco e, utilizando o novo valor da sua casa como colateral, negociava um novo empréstimo para gastar em bens de consumo, como carros e televisores de plasma.

Um arranjo como este perdura enquanto os preços dos imóveis estiverem em ascensão.  Se os preços começarem a cair, duas coisas ocorrerão: a revenda do imóvel passará a dar prejuízo e o valor da hipoteca será maior do que o valor do imóvel, o que impedirá qualquer tipo de renegociação com os bancos e deixará o mutuário com um patrimônio negativo.  Em suma, todo o esquema especulativo virá abaixo.  E não apenas isso: dar o calote e abandonar o imóvel passará a ser a opção mais racional (e, como veremos mais abaixo, foi isso o que ocorreu no final da década.)

Agências de classificação de risco

Mas o que tornou possível essa contínua especulação?  O que fez com que Fannie e Freddie fossem capazes de comprar e revender títulos lastreados em hipotecas ininterruptamente?  Como dito acima, em setembro de 2008, ambas as empresas detinham metade das hipotecas do país e praticamente 75% das hipotecas recém-concedidas.  De onde vieram os fundos que permitiram isso?  Resposta: de duas fontes.

Em primeiro lugar, não se pode de modo algum ignorar a função deletéria exercida pelas agências de classificação de risco, como Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s.  Sem elas, a bolha imobiliária certamente teria sido menor.  Qual foi o estrago que elas fizeram?

Para entender, voltemos àquele exemplo prático dado logo no início do artigo.  Um americano típico, John Smith, vai a um banco qualquer e consegue um empréstimo para comprar um imóvel.  Ato contínuo, este banco irá revender este empréstimo (que é um ativo) para Fannie e Freddie.  Ambas terão a opção de ou manter este ativo ou revender este ativo.  Na maioria das vezes, como mostram os números do parágrafo acima, elas mantinham este ativo em suas carteiras.  Porém, em vários casos, elas empacotavam estes ativos e revendiam para investidores de todo o mundo, em sua esmagadora maioria grandes conglomerados financeiros e grandes bancos de investimento.

Bear Stearns, Lehman Brothers, Goldman Sachs, JPMorgan Chase, Merril Lynch, Morgan Stanley, Citibank, Bank of America eram os compradores americanos mais famosos, ao passo que Barclays, Royal Bank of Scotland e Northern Rock (Reino Unido), BNP Paribas e Société Générale (França), Credit Suisse e UBS (Suíça), e Deutsche Bank (Alemanha) eram os mais famosos compradores da Europa.

Esta prática de empacotar ativos e revendê-los é chamada de securitização.  O principal problema com esta securitização é que ela misturava ativos bons (mutuários com bom histórico de crédito) com ativos ruins (mutuários sem nenhum histórico de crédito) no mesmo pacote.  Logo, quem comprava um pacote contendo ativos bons também acabava por tabela adquirindo ativos ruins.  Qualquer calote dos ativos ruins afetaria sobremaneira os balancetes destas instituições.

Portanto, a pergunta inevitável é: como estes grandes bancos foram seduzidos a comprar estes ativos (tecnicamente chamados de derivativos de crédito) contaminados?  Resposta: porque agências de classificação de risco, como Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s, deram classificação máxima (AAA) para estes ativos.

O que nos leva à próxima pergunta: por que estas agências cometeram erros tão crassos?  As respostas variam.  Há quem diga que, como durante todo o período os preços dos imóveis só faziam subir e os títulos lastreados em hipotecas estavam gerando grandes retornos, com pouquíssimos calotes, as agências optaram pela decisão superficial de classificá-los de maneira extremamente favorável.  Há também quem diga que todos os departamentos do governo federal americano que possuíam ligações com o setor imobiliário e que estavam incentivando políticas de compra de imóveis fizeram pressão neste sentido.  Neste caso, as agências de classificação de risco simplesmente não quiseram se opor a iniciativas politicamente populares.

O que realmente se sabe é que estas três agências de classificação de risco são um cartel estritamente regulado pela SEC (a CVM americana).  É a SEC quem permite a existência destas três agências, e é ela quem regulamenta e decide quem pode e quem não pode entrar neste mercado.

Na prática, isso significa que não pode surgir concorrência externa, pois o governo não deixa. Quem vai ter cacife para bancar uma agência de classificação de risco que seja genuinamente independente neste cenário altamente regulamentado?  Há um longo e extenuante processo burocrático-regulatório, de modo que é impossível surgir uma agência para confrontar as classificações destas três grandes.

Portanto, é perfeitamente plausível imaginar que estas três agências não iriam querer criar turbulência política e se indispor com o governo americano rebaixando a classificação dos títulos hipotecários.  Isso poderia colocar em risco seu privilegiado cartel (totalmente protegido pelo governo americano) e, consequentemente, afetar seus portentosos lucros.  O fato é que estas agências merecem toda a culpa que lhes foi atribuída.  Elas estavam apenas fazendo o que o governo lhes mandava.

O principal culpado de tudo

No entanto — e este é o tema desta seção — absolutamente nada disso teria sido possível caso não houvesse uma entidade com o poder legal de criar dinheiro do nada e injetar este dinheiro no setor bancário para que os bancos pudessem continuamente criar mais empréstimos.  Sem uma entidade alimentando todo este sistema com dinheiro criado do nada, não teria sido possível que (1) os empréstimos bancários para a aquisição de imóveis aumentassem continuamente por 15 anos; (2) que os preços dos imóveis disparassem, alimentando todos os tipos de atividades especulativas; (3) que Fannie Mae e Freddie Mac fossem capazes de atrair um volume cada vez maior de dinheiro de investidores por contarem com a proteção implícita do governo; (4) que o decreto CRA fosse bem-sucedido em obrigar os bancos a continuamente fazer empréstimos para pessoas com histórico de crédito duvidoso.

Em suma: sem um Banco Central criando dinheiro e dando este dinheiro aos bancos para que estes concedessem empréstimos — e, com isso, fizessem com que a quantidade de dinheiro na economia americana aumentasse continuamente —, não teria como haver uma bolha imobiliária.  Certamente, não uma bolha destas proporções.

Todo este novo dinheiro criado pelo Banco Central americano (Fed) e multiplicado pelo sistema bancário por meio do processo de reservas fracionárias foi majoritariamente canalizado para o setor imobiliário.  E, para intensificar ainda mais as distorções, os critérios excessivamente frouxos para a concessão de empréstimos — critérios estes gerados por políticas governamentais criadas exatamente com este propósito — fizeram com que especulações e compras imobiliárias excessivas parecessem investimentos geniais.

Portanto, eis o resumo: as medidas governamentais visando à redução dos padrões de empréstimos em conjunto com os privilégios usufruídos pelas para-estatais Fannie Mae e Freddie Mac desviaram para o setor imobiliário uma fatia extremamente volumosa de todo o dinheiro que o Banco Central e o sistema bancário do EUA estavam criando.  Para tornar a tempestade ainda mais perfeita, as agências de classificação de risco contribuíram para a bagunça concedendo classificação máxima para todos os títulos imobiliários oriundos deste arranjo, principalmente aqueles títulos de emprestadores sem nenhum histórico de crédito.  Isso fez com que os grandes bancos americanos, e também os grandes bancos estrangeiros, comprassem títulos hipotecários em quantias volumosas, permitindo que Fannie e Freddie continuassem dando liquidez ao mercado imobiliário, perpetuando a bolha.

Mas foi o Fed, em última instância, quem tornou possível todo o boom artificial do setor imobiliário, e foi todo o dinheiro por ele criado quem forneceu o principal estímulo à subida estrondosa dos preços dos imóveis vista na década de 2000.

Anatomia do colapso

Tendo em mente todo este arranjo, e sabendo como tudo funcionava, podemos agora ver como tudo ocorreu.

A bonança

Todo o processo começou a ser desencadeado no final do ano 2000, quando houve o estouro da bolha das empresas de tecnologia.  Temendo uma iminente recessão, o Fed aumentou suas injeções de dinheiro no sistema bancário para gerar uma redução nos juros.  Estas injeções de dinheiro foram intensificadas logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.  Durante este período, a taxa básica de juros da economia americana caiu de 6,5% para 1%.  E assim ficou até meados de 2004.

O gráfico abaixo ilustra este período.  A linha azul, eixo da esquerda, mostra a evolução da taxa básica de juros da economia americana.  A linha vermelha, eixo da direita, mostra a evolução da base monetária, que é uma variável sob total controle do Banco Central, e que representa todo o dinheiro criado pelo Banco Central.  Observe a aceleração ocorrida a partir de 2001.

Gráfico 2: evolução da taxa básica de juros (linha azul, eixo da esquerda) e evolução da base monetária (linha vermelha, eixo da direita).

Gráfico 2

Este aumento na base monetária deixou os bancos repletos de dinheiro para ser emprestado.  E emprestar foi o que eles fizeram, e majoritariamente para o setor imobiliário.

O gráfico abaixo mostra os empréstimos totais feitos pelo setor bancário (linha azul).  E mostra também os empréstimos exclusivamente voltados para a aquisição de imóveis (linha vermelha).  Observe a evolução desde 1980, e a grande aceleração ocorrida na década de 2000.

Gráfico 3: evolução do crédito total concedido pelo setor bancário (linha azul) e evolução do crédito total concedido à compra de imóveis (linha vermelha).

Gráfico 3

Vale observar que, de 2000 a 2008, o crédito total aumenta incríveis 100%, de US$3,5 para US$7 trilhões.  Isso significa que o sistema bancário, estimulado pelo Fed, jogou US$3,5 trilhões na economia americana em apenas 8 anos.  Para a aquisição de imóveis foram direcionados “módicos” US$2 trilhões (de US$1,5 trilhão para US$3,5 trilhões).

Ou seja, dos US$3,5 trilhões jogados na economia, US$2 trilhões foram para o setor imobiliário.  Acrescente a isso todas as medidas governamentais citadas ao longo deste artigo, e realmente não há absolutamente nenhum motivo para se estranhar a bolha imobiliária que foi formada.

Isso explica toda aquela elevação de preços observada no gráfico 1.  De 1993 a 2006, os preços dos imóveis se apreciaram acentuadamente.  Em alguns mercados específicos, até mesmo os preços das moradias mais simples se tornaram astronomicamente altos.  Esta subida nos preços estimulava novos investimentos em mais construções de imóveis, o que gerava um aumento na oferta de imóveis.  E este aumento na oferta de imóveis viria, mais à frente, a exercer uma pressão baixista nos preços dos imóveis.

O colapso

A partir de meados de 2004, com a economia americana já recuperada da recessão de 2001, o Fed começou a reduzir o ritmo de injeções de dinheiro no sistema bancário.  Consequentemente, os juros começaram a subir.

O gráfico abaixo mostra esta correlação entre desaceleração do crescimento da base monetária e aumento da taxa básica de juros.

Gráfico 4: evolução da taxa básica de juros (linha azul, eixo da esquerda) e evolução da base monetária (linha vermelha, eixo da direita).

Gráfico 4

Este aumento da taxa básica de juros de 1% para 5,25% afetou as taxas de juros dos empréstimos imobiliários.  Os juros das hipotecas com taxas ajustáveis (linha vermelha) saem de uma mínima de 3,5% no início de 2004 e vão para quase 6% em meados de 2006.  Já os juros das hipotecas convencionais, de 30 anos (linha azul), vão de 5,5% para quase 7% neste mesmo período.

Gráfico 5: evolução das taxas de juros das hipotecas com taxas ajustáveis (linha vermelha) e evolução das taxas de juros das hipotecas convencionais, de 30 anos (linha azul)

Gráfico 5

Este aumento dos juros esfriou a demanda por imóveis.  Uma redução na demanda por imóveis em conjunto com um acentuado aumento na oferta de imóveis gerou o inevitável: no final de 2006, os preços começaram a cair.

A queda nos preços — na realidade, a percepção de que os preços não mais iriam aumentar — arrefeceu toda a atividade especulativa.  Pessoas que haviam comprado imóveis para especular viram que a festa havia acabado.  O que elas fizeram?  Simplesmente pararam de pagar suas hipotecas.  Deram o calote.  Por quê?  Porque elas haviam pegado empréstimos extremamente generosos, que não exigiam absolutamente nenhum pagamento de entrada.  Elas simplesmente abandonaram seus imóveis.  Não perderam nada.

Já outras pessoas pararam de pagar suas hipotecas simplesmente porque o aumento dos juros havia tornado impossível continuar honrando suas prestações.

A combinação destes dois fatores fez com que os calotes totais nos empréstimos imobiliários disparassem.  Começou timidamente em 2006.  Disparou em 2007.  Foi para a estratosfera em 2008.

De 2005 até o final de 2008, os calotes pularam de US$20 bilhões para US$170 bilhões.  Um aumento de 750% em 4 anos.

Gráfico 6: Inadimplência total dos empréstimos garantidos por imóveis

Gráfico 6

A partir daí, o resto é história.  O aumento nos calotes fez com que todos os bancos de investimento que haviam comprados títulos lastreados em hipotecas repentinamente não mais auferissem essa receita.  O valor destes ativos caiu para zero.  Uma redução nos ativos sem uma concomitante redução nos passivos fez com que vários destes bancos sofressem uma brutal redução em seu capital (patrimônio líquido).  Com o capital afetado, os bancos simplesmente pararam de conceder novos empréstimos, inclusive entre eles próprios no mercado interbancário.  Isso gerou o famoso problema do congelamento do mercado de crédito. (Veja no gráfico 3 como a linha azul se torna plana no primeiro semestre de 2008).  Consequentemente, vários bancos começaram a enfrentar sérios problemas de liquidez.

Essa crise começou a se tornar mundialmente visível em agosto de 2007.  No dia 9 daquele mês, o banco francês BNP Paribas anunciou que estava suspendendo saques em dois dos seus fundos que haviam investido volumosamente em títulos lastreados em hipotecas americanas.  Isso afetou o banco britânico Northern Rock, que dependia exatamente destes fundos de investimento para conseguir liquidez.  Incapaz de conseguir um empréstimo de curto prazo no mercado bancário, o Northern Rock recorreu ao Banco Central da Inglaterra para pedir um empréstimo de 3 bilhões de libras.  Tudo parecia estar indo bem, exceto por um detalhe: um informante dentro do Banco da Inglaterra alertou a BBC sobre a operação no dia 13 de setembro de 2007.  A notícia de que o banco estava insolvente se espalhou como fogo na pólvora e, na manhã seguinte, houve uma corrida bancária ao Northern Rock, com correntistas ávidos para sacar seu dinheiro.  Foi a primeira corrida bancária em larga escala desde 1930.  O governo britânico anunciou que iria garantir todos os depósitos do banco.  No dia 17 de fevereiro de 2008, após o governo recusar várias ofertas de aquisição pelos outros bancos, o Northern Rock foi nacionalizado.

Daí por diante, todo o castelo de cartas começou a desabar.

O banco de investimentos Bear Stearns se tornou insolvente em março de 2008.  O Tesouro americano orquestrou sua aquisição pelo JP Morgan.

No dia 7 de setembro, Fannie Mae e Freddie Mac foram nacionalizadas completamente.

Na semana seguinte, o Fed orquestrou a aquisição do Merril Lynch pelo Bank of America.

No dia 15 de setembro, o Lehman Brothers anunciou sua falência.  Não houve socorro.

No dia seguinte, a seguradora AIG, de alcance global, também anunciou que estava sem dinheiro.  O caso da AIG é interessante.  Ela repentinamente se descobriu sem dinheiro não porque havia investido em títulos lastreados em hipotecas, mas sim porque havia emitidos seguros contra o calote de hipotecas (os chamados “credit default swaps”).  Sempre que uma instituição era caloteada por algum devedor, ela recorria à AIG, que havia emitido apólices contra esses calotes hipotecários.  Com a súbita disparada nos calotes, a AIG repentinamente foi para o vermelho.

E por que a AIG havia emitido tantas apólices de seguro contra calotes de hipotecas?  Porque ela havia sido informada pelo governo de que os preços dos imóveis jamais cairiam, e havia também sido informada pelas três agências de classificação de risco e que os títulos lastreados em hipotecas eram AAA — isto é, extremamente confiáveis e seguros.  Ou seja, em troca desta segurança prometida, a AIG emitiu várias apólices e coletou uma boa soma em prêmios.  Até que tudo se reverteu, e todos os bancos foram correndo reclamar suas indenizações.

No total, até o fim do ano de 2008, o Fed viria a emprestar US$125 bilhões para a AIG em troca de 80% da empresa.  Segundo o The New York Times, esta foi “a mais radical intervenção no setor privado em toda a história do Banco Central”.

Após todas estas intervenções, o Fed assumiu uma postura totalmente inaudita em toda a sua história: ele simplesmente passou a comprar todos os títulos hipotecários em posse dos bancos.  Ou seja, ele passou a imprimir dinheiro e dar aos bancos em troca dos títulos hipotecários em posse destes bancos.  Isso limpou o balancete dos bancos e fez com que a base monetária explodisse.  No entanto, e felizmente, todo este aumento da base monetária não se converteu em expansão do crédito.  Ou seja, os bancos não jogaram este dinheiro na economia.  A quase totalidade do aumento da base monetária transformou-se em “reservas em excesso”.  “Reservas em excesso” são as reservas que os bancos mantêm voluntariamente depositadas junto ao Fed, além do volume determinado pelo compulsório.

O gráfico abaixo mostra a evolução da base monetária (linha azul) e das reservas em excesso (linha vermelha), que representa o dinheiro que os bancos não emprestaram ao público porque preferriam mantê-lo voluntariamente depositado junto ao Fed, que está pagando juros de 0,25% ao ano sobre este montante.

Gráfico 7: evolução da base monetária (linha azul) e evolução das reservas em excesso (linha vermelha)

Gráfico 7

Toda esta nova política adotada pelo Fed resultou em um generoso e gratuito subsídio para o sistema bancário.  No final, não apenas seus lucros dos tempos da bonança foram mantidos, como os prejuízos ainda foram socializados.  Atualmente, os bancos de Wall Street operam em um regime de risco quase nulo: eles fazem empréstimos hipotecários, revendem os títulos das hipotecas para o Fed, recebem o dinheiro de volta (com um lucro), e ainda deixam boa parte deste dinheiro recebido do Fed depositado no próprio Fed, que está pagando 0,25% ao ano sobre este montante.

Por causa de toda a intervenção governamental, toda a lambança acabou valendo a pena para os bancos.

Conclusão

Não é o escopo deste artigo fazer digressões sobre como o governo americano e seu Banco Central deveriam ter atuado durante a crise.  Crises bancárias é um assunto vasto e complexo, e merece um artigo à parte (um esboço pode ser visto aqui e um mais completo aqui).  Tampouco houve o intuito de fazer algum juízo de valor.  A única intenção foi mostrar, sem ideologias ou partidarismos, como realmente se desenrolou todo o processo que levou à formação de uma bolha imobiliária, como se deu seu estouro e como isso afetou todo o sistema bancário.

De posse de todas as informações aqui contidas, o leitor deve se fazer as três seguintes perguntas:

1) Todo este arranjo apresentado configura um sistema totalmente desregulamentado, um genuíno laissez-faire, ou, ao contrário, representa um sistema fortemente intervencionista, no qual políticos, burocratas e reguladores determinavam regras e agitavam em prol de suas conveniências?

2) Um sistema bancário que goza de uma garantia implícita dada pelo governo — de que haverá socorro caso as coisas deem erradas — tende a apresentar comportamentos mais temerários ou mais prudentes?

3) Sem um Banco Central criando dinheiro e permitindo aos bancos manterem suas expansões creditícias de modo crescente, será que tudo isso teria sido possível?

As respostas a estas perguntas têm de estar claras antes de se iniciar qualquer debate a respeito da crise.

Não, a Crise de 1929 não foi causada pelo liberalismo econômico

Este artigo foi publicado no blog “Mundo Analista“. Pode ser lido aqui também.

crise-de-1929Na escola e na faculdade, geralmente aprendemos que a Crise de 1929 foi causada pelo liberalismo econômico extremo (o laissez-faire). A explicação que nos dão é que a economia cresceu tanto que gerou superprodução pelas empresas. Daí sobrava coisa e ninguém comprava. Alguns adicionam na explicação que a produção crescia mais do que os salários das pessoas. Então, elas não podiam comprar.

Aprendemos isso como se fosse a explicação uma explicação perfeita e como se não existisse nenhuma explicação concorrente para ser analisada. Assim pensamos que ela é a verdade e acabou. Mas vamos analisar algumas coisas.

Primeiro: como superprodução pode ser um problema? Se eu tenho uma fabrica e ela produz mais que suficiente, tudo o que eu preciso fazer é produzir menos. Agora, reduzir produção não traz mais dinheiro. Então, é óbvio que a causa da crise não pode ter sido superprodução. A superprodução é um dos efeitos da crise. Mas o que causou a superprodução?

Superprodução pode ser causada por má administração da empresa, ou por queda no poder de compra dos clientes, ou por redução do mercado consumidor, ou ainda, por saturação de um ramo do mercado. O primeiro caso é facilmente resolvido e não explica uma crise generalizada num país. Queda no poder de compra dos clientes e redução do mercado consumidor foram dois fatores que ocorreram justamente dois fatores que ocorreram por causa da crise. A crise levou pessoas a serem demitidas e outras a se endividarem, reduzindo-se o consumo. Então, até aqui ainda estamos tratando dos efeitos da crise e não de sua causa.

O último caso é o da saturação de um ramo do mercado, isto é, muitas empresas disputando num mesmo ramo até o ponto em que não há mais como disputar. A hipótese é que com uma concorrência tão grande, as empresas teriam começado a lucrar menos e falido. Essa opção também não explica a crise. Quando um ramo está saturado, a tendência é que novos empresários não entrem nele, pois sabem que não conseguirão lucrar. Ademais, o natural não é que em um ramo saturado todos os empresários entrem em falência, mas sim os menos aptos a enfrentar a concorrência (que geralmente não são aqueles que já chegaram no topo). E se, porventura, uma empresa do topo não resistir e ir à falência, outra empresa entrará no seu lugar e ela simplesmente sairá do ramo, tornando o mercado menos saturado. A falência de uma grande empresa por perder na concorrência não leva diversas outras grandes empresas (incluindo concorrentes) a falirem, criando uma crise; apenas põe outra em seu lugar. Então, a saturação também não explica a crise de 1929.

Segundo: a explicação da superprodução apresenta algumas inconsistências lógicas. Como explicar que estava tudo bem enquanto se produzia menos, mas quando se passou a produzir mais e se baratear o consumo, as pessoas deixaram de ter condição para comprar? Isso não faz sentido. E como explicar que os maiores empresários de um país, que são aqueles que melhor fazem os investimentos (não é à toa que estão no topo), irão quebrar quase simultaneamente? Como todos erraram tão feio ao mesmo tempo? E logo após um período de muita prosperidade. Não é estranho? Há também uma inconsistência histórica. As primeiras empresas a serem afetadas pela crise não foram as de bens de consumo, mas as indústrias de base. Essas que produzem ferramentas e máquinas para outras empresas. Se o problema tivesse a ver com superprodução, o mais lógico era que as empresas de bem de consumo fossem afetadas primeiro, já que é o setor onde há maior produção.

Felizmente, essa explicação da superprodução não é a única que existe. Ela é apenas uma teoria (bem frágil, como pudemos ver). Outra explicação mais plausível é sustentada pela Escola Austríaca de Economia, tendo expoentes como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Passo a expô-la agora.

Embora os EUA tivessem a economia muito mais liberal do que hoje em dia, o período de ouro do liberalismo americano não foi nos anos 20. Foi sim no fim do século 19 e início do século 20 até 1913. Em 1913 foi criado do FED (o Banco Central Americano) para regular os bancos. A criação do FED era, em tese, para evitar que os bancos inflassem moedas. Isso acontecia com alguma frequência e por isso muitos bancos iam à falência. O problema é que o FED, tal como todos os Bancos Centrais pelo mundo, acabam servindo como um regulamentador de cartel. Afinal, ele mesmo infla a moeda, mas para todos os bancos, o que evita a falência deles. E para quem isso é bom? Para os bancos e para o governo, pois com a inflação de moeda, as taxas de juros são reduzidas (quanto mais moeda circulando, mais barato ele fica). Com as taxas reduzidas, as empresas pegam mais empréstimos (e empréstimos altos) para seus projetos. E assim a economia cresce, mais empregos são gerados e há mais consumo. Então, é comum que os governos intervenham na economia através dos Bancos Centrais para acelerá-la.

Entretanto, todo crescimento artificial dá problema um dia. A expansão desordenada de crédito e a derrubada artificial de juros não podem continuar para sempre, pois acabarão gerando uma hiperinflação. Essa hiperinflação pode ser evitada, retardada e até maquiada por um tempo quando a economia está muito produtiva e em crescimento. Mas uma hora ela pedirá as contas pela distorção causada pela expansão creditícia. Prevendo isso, o governo americano travou a expansão. É nesse momento que a crise começa. Vamos entender o panorama.

Várias grandes empresas haviam pego empréstimos gigantes para implementar seus projetos, por conta das baixas taxas de juros. Quando o governo trava a expansão de moeda, as taxas de juros começam a subir. Então, em pouco tempo, os empresários se veem impossibilitados de pagar pelos seus empréstimos que pegaram. As primeiras empresas a sofrerem são as indústrias de base, pois seus investimentos são muito mais caros. Sem poder pagar aos bancos, essas empresas começam a demitir funcionários e cortar custos. O crescimento do desemprego reduz o poder de compra dos clientes e o mercado consumidor, criando mais dívidas para as empresas. Entretanto, com o ritmo acelerado de produção das indústrias em geral, da abundância de produtos e da grande concorrência, essas empresas se veem obrigadas a manter os preços baixos. É neste ínterim que os produtos começam a sobrar. Com as empresas sem poderem pagar suas dívidas e muitas indo à falência, os bancos também começam a ficar em situação ruim, já que não estão tendo de volta os seus empréstimos.

A situação piora com o crescimento de cidadãos desempregados querendo pegar o dinheiro que guardavam nos bancos. Aqui abrimos parênteses. Como se reduz a taxa de juros naturalmente? Através da poupança das pessoas. Num período em que as pessoas estão estimuladas a poupar, o banco tem bastante dinheiro. E assim o preço do dinheiro (os juros) se torna mais baixo. Mas quando os juros são baixados artificialmente (através de inflação de moeda), não há poupança suficiente no banco. Então, uma vez que o banco empreste muito dinheiro e os devedores não devolvam, haverá pouco dinheiro para os correntistas. Pois foi isso o que aconteceu. Os correntistas queriam pegar seus valores, mas o banco não tinha como atender a todos, pois não havia poupança suficiente. Os bancos começam, então, a quebrar.

Com a quebra dos bancos, começaram a sofrer com mais intensidade as empresas de bens de consumo e os cidadãos que perderam o dinheiro que tinham nos bancos que faliram. Mas como havia muitas empresas e a economia tinha crescido muito até ali, a produção permaneceu mais alta do que o nível de consumo, desacelerando em um nível sempre mais lento que a capacidade de compra dos clientes. Em outras palavras, as empresas e os clientes quebraram com maior velocidade do que a produção desacelerou. A quebra, como se pode ver, não foi causada pela superprodução. Esta foi um efeito da crise. Tal estado de coisas causou a deflação nos preços.

É interessante comparar a crise americana de 29 com a do Brasil atual. Elas tem a mesma causa. No governo Lula, o crédito foi expandido irresponsavelmente. O breve aceleração econômica conteve o aumento de preços por um tempo, mas logo a a política intervencionista se mostrou danosa. A diferença é está no grau de liberdade economica e competitividade. Como nos EUA de 29 estes eram bem superiores ao Brasil de hoje, o efeito da crise foi superprodução e a consequente deflação de preços. No Brasil, o efeito tem sido a inflação de preços, já que sua pouca liberdade econômica não gerou um cenário competitivo o suficiente para, em uma crise, gerar superprodução. Isso não é, no entanto, um louvor à crise americana. Os efeitos da crise, sejam inflação ou deflação, são ruins do mesmo jeito, pois em ambos os casos o poder de compra do consumidor está afetado, o desemprego cresce e a economia começa a se desacelerar.

A crise de 29 poderia ter sido menos extensa. O problema é que as teorias utilizadas para entendê-la e controlá-la seguiram uma linha de raciocínio baseada nas ideias de Karl Marx e do economista John Maynard Keynes. Nessa linha de raciocínio, os efeitos da crise (superprodução e deflação de preços) foram tomados como suas causas. E o intervencionismo estatal (que causou a crise) foi tomado como uma forma de resolver o problema. A partir de então se disseminou a ideia de que se o governo não intervém, graves crises econômicas podem surgir. No entanto, como vimos, a crise foi causada por conta de intervenções irresponsáveis do governo. E se prolongou por conta das mesmas. O melhor que se poderia ter feito diante daquela crise (e o melhor que se tem a fazer quando há uma crise) é reduzir a intervenção e deixar o mercado voltar ao seu rumo natural.

A lição que a Escola Austríaca nos deixa é que quando você derruba juros artificialmente, através expansão de moeda, você está criando uma economia distorcida, uma economia falsa. Quando você parar de distorcê-la, é a hora do acerto de contas. Ela começará o caminho de retorno. Esse caminho será dolorido, mas é necessário. A economia precisa se tornar real. É aqui que entendemos porque um número tão grande de megaempresas afundaram quase ao mesmo tempo. Elas fizeram projeções de longo prazo baseadas em uma economia falsa. Se planejaram baseados em dados mentirosos. Não tinham como prever que eram mentirosos. Mentiras plantadas pelo governo.

Obs.: Este artigo é um resumo das ideias contidas em um artigo mais antigo: “Como seria um bom governo de direita? – Parte 3“, que fala sobre este e outros temas. Vi a necessidade de fazer um novo texto sobre o assunto, com explicação mais simples, linguagem mais dinâmica e focando apenas na Crise de 1929.

A esquerda e a derrota

O raciocínio de esquerda a respeito da derrota é similar em todos os campos em que há vencedores e perdedores. A estrutura lógica do pensamento é a seguinte: se alguém, principalmente se for mais fraco, perde, a culpa não é dele. De quem é? Do capitalismo, da sociedade, enfim, de qualquer terceiro, nunca daquele perdeu.

O Partido da Causa Operária, por meio do jornal Causa Operária, após a humilhante derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014 para a Alemanha por um placar histórico, publicou um artigo sobre a partida. Não é de se surpreender que ele está situado na mesma estrutura de raciocínio acima.

De acordo com o artigo, escrito pelo candidato à presidência do Brasil nas eleições de 2014 e presidente do PCO Rui Costa Pimenta, a derrota veio muito antes do início da partida. A derrota da seleção brasileira foi o resultado das ações da “direita nacional, dos monopólios capitalistas, da imprensa” e até mesmo de outros setores da própria esquerda, numa disputa entre semelhantes ideológicos que muita se assemelha (só que mais amigável) ao embate entre Josef Stalin e Leon Trotsky após a morte de Vladimir Lenin na União Soviética, que terminou com a vitória de Stalin, e com Trotsky sendo expurgado da ex-URSS e posteriormente assassinado no México.

O artigo continua como é de praxe no futebol entre aqueles que não conseguem assumir a derrota por incompetência, ou seja, atribuindo a culpa à arbitragem. De fato, por vezes a arbitragem influencia sim no resultado final, mas não em um massacre desse nível. A seleção, “que não pode ser culpada por nada”, teve que lutar “contra todos os juízes e tramoias obscuras” sem o seu melhor jogador, igual ao povo brasileiro, e aí surgem os apelos emotivos característicos.

Já outro artigo, publicado logo após a derrota, esbanja a caricatura do argumento. De qualidade argumentativa inferior, tanto por conhecimento sociopolítico quanto por até mesmo do próprio futebol, descreve com um ufanismo inicial que a seleção brasileira jogava melhor que a alemã até sofrer o primeiro gol, e que poderia dominar um jogo contra uma seleção que possui alguns dos melhores jogadores do mundo com facilidade. Mas o Brasil jogava desfalcado, sem seu capitão Thiago Silva – como se a ausência de um único jogador entre 11 fosse suficiente para desestabilizar um time que dominaria com facilidade. O capitão foi, segundo o autor, suspenso “coincidentemente” no jogo contra a seleção colombiana, num lance em que atrapalhou o goleiro colombiano enquanto o mesmo mantinha a posse de bola e iria fazer a reposição, e já que “a regra é clara”, se trata de uma infração a ser punida com cartão amarelo, que tirou o jogador da semifinal.

No mesmo jogo, o Brasil perdeu Neymar, o craque do time, num lance em que o árbitro não marcou falta pois aplicou a lei da vantagem, errando apenas em não advertir o jogador posteriormente – como se dar cartão ao jogador fosse trazer o Neymar de volta da lesão. Todavia, novamente segundo o autor, Brasil foi altamente prejudicado nisso, algo que colocaria a participação país em risco – como se a própria seleção brasileira não tivesse ganho a Copa do Mundo de 1962 após perder o gênio Pelé também por lesão logo no segundo jogo e como se a Alemanha não estivesse perdendo vários jogadores para a disputa do mundial meses antes da disputa.

Aqueles que julgam que a Alemanha, país tradicionalíssimo no futebol e com jogadores titulares entre os melhores clubes do mundo, possui melhor seleção não é porque realizaram um trabalho recente mais sério em relação ao esporte do que o Brasil. Não, é superior pois existe um sentimento da época nazista da superioridade germânica, algo que a classe média coxinha (termo que se popularizou entre a esquerda recentemente) aceitou. Aliás, a classe média coxinha é aquela que não supostamente não apoiava o time, e o belo canto do hino brasileiro antes dos jogos, por exemplo, deve ser pura ilusão.

Já no que diz respeito à economia da Alemanha, a mesma é, segundo o mesmo raciocínio vitimista, a responsável por milhões de mortes por fome na Europa e no mundo todo. Sobre a Europa, é algo completamente em desacordo com a realidade. Talvez a fonte da informação seja uma declaração de Vigdís Hauksdóttir, islandesa do Partido Progressista islandês, que afirmou que a Europa sofre de fome atualmente e que Malta não é um país. Vigdís foi criticada por Sigríður Víðis Jónsdóttir, diretora de comunicações da UNICEF na Islândia, pelo uso trivial e irresponsável da palavra fome. Também afirmou que, estatisticamente falando, se realmente esse fosse o cenário, com o tamanho da atual população europeia, aproximadamente dez mil pessoas estariam morrendo todos os dias em cidades como Roma, Atenas e Madrid, o que de fato não prossegue.

De qualquer forma, o que faz a Alemanha com o seu maldoso programa de austeridade, que causa fome em terceiros? Tenta manter as contas públicas em ordem, sem gastar muito e sem usurpar muitos recursos do setor produtivo da sociedade por meio de altos impostos, preza por produtividade caso queira mais salários e produção, e qualquer outra coisa economicamente sensata. Aliás, a austeridade alemã não é tão resistente quanto a suíça ou a báltica, mas está muito distante das insanidades cometidas por Reino UnidoEspanha, Grécia, França e outros países da União Europeia. Mais detalhes de austeridade na Europa e suas consequências neste link.

Na mentalidade vitimista, países que passam por dificuldades econômicas são vítimas. Antes, apenas dos Estados Unidos imperialista neoliberal “e insira aqui mais alguns termos pejorativos”, mas agora a Alemanha se tornou o mais novo alvo, principalmente no contexto europeu. Esses países mais pobres não passam por dificuldades pois em alguns momentos no passado erraram e esses erros refletem na atualidade, passam por dificuldades pois terceiros impuseram essa realidade. Se você não faz o certo e erra a culpa não é sua, é dos Estados Unidos. Ou, nos casos mais recentes, da Alemanha.

China, salários e a Revolução Industrial

No lado ocidental do globo, incluindo nas terras brasileiras, há a disseminação da ideia (que possui um fundo realmente verdadeiro) de que a China e seu povo são sinônimos de baixos salários e produtos falsificados, de baixa qualidade. Os famosos produtos fabricados na China, os populares “made in China” são conhecidos por terem baixa qualidade e, ainda por cima – e para o temor dos protecionistas, defensores da “indústria nacional” -, serem baratos, tendo os preços baixos por, também, serem produzidos por uma população que recebe baixos salários.

Os motivos dessa situação de trabalho degradante e  baixos salários, assim como paralelos com situações parecidas de outros países no passado serão abordados neste presente artigo.

China: passado e atualidade

Não é muito difundida no Brasil uma triste porém importante parte do passado recente chinês, conhecida como Grande Salto para Frente, iniciado entre 1957 e 1958. Talvez, por motivos ideológicos, pois o Grande Salto para Frente simbolizou, na prática, um “Grande Salto para Trás”, o que vitimou dezenas de milhões de pessoas, tanto por questões de governos autoritários quanto pela fome generalizada que tal postura criou. Essa política foi idealizada por Mao Tsé-Tung, provavelmente o nome mais importante do socialismo chinês.

Mao, filho de camponeses, foi estudar em Changsha, que é a capital da província de Hunan. Lá, conheceu ideias ocidentais, principalmente as nacionalistas. Em 1911, Mao participou do exército da Revolução de Xinhai, de caráter nacionalista e contrária às dinastias chinesas, e em 1921 participou da fundação do Partido Comunista Chinês, se tornando o chefe do partido em 1945. Nacionalistas e comunistas se uniram (parcialmente) na Segunda Guerra Mundial contra o Japão, mas logo após o término da guerra ambos se enfrentaram em uma guerra civil, vencida pelos comunistas em 1949. O partido ainda está no poder atualmente.

Com Mao no poder, se iniciou um processo de coletivização de terras, assim como um rumo da sociedade ao socialismo, e talvez na forma mais brutal possível. Os latifundiários, representantes do “inimigo” na luta de classes, foram perseguidos, expurgados e até mesmo exterminados. Posteriormente, proprietários de terra, não necessariamente latifundiários, tiveram o mesmo destino, e suas terras foram “socializadas” entre a população. A mesma situação passou a ocorrer nas cidades, sendo que prisões e até mesmo execuções sumárias ocorriam, além de trabalho forçado em campos de concentração, que também podem ser descritos como “campos de morte”. A estatização das indústria se intensificou, assim como o número de mortos.

Então, Mao deu mais um passo em direção à centralização, e passou a ditar o que, como e quando deveriam plantar, ou até mesmo se a pessoa deveria trabalhar na agricultura ou na indústria, e o igualitarismo econômico foi levado ao pé da letra. Toda a produção nacional entrou em desequilíbrio, já que estava totalmente sob os caprichos de burocratas inescrupulosos do governo. Uma determinada intervenção estatal, conforme Ludwig von Mises demonstrou, desequilibra a economia em um determinado ponto. Assim sendo, em nome do “bem comum”, o governo novamente entra em ação, gerando um novo problema, e assim sucessivamente. Mao “se identificava” muito com essa ideia, tanto que envolveu a própria natureza para prová-la, só que involuntariamente. Em 1958, iniciou a Campanha das Quatro Pragas – ratos, moscas, mosquitos e pardais.

Os três primeiros fazem até sentido, mas por que pardais? Porque pardais se alimentam, entre outras coisas, de sementes de grãos, e a sociedade estava caminhando rumo à fome generalizada. Pequenos pardais se tornaram uma ameaça ao poderoso regime chinês, e foram exterminados – assim como a burguesia, afinal, ambos eram uma “ameaça” ao regime. Só que os pardais não se alimentam apenas de sementes. Também se alimentam de insetos que atacam plantações, como gafanhotos. O resultado, evidente, foi um aumento na população de gafanhotos, que atacaram com ainda mais intensidade as plantações, agravando ainda mais a fome. Essas políticas econômicas intervencionistas intensificaram a Grande Fome Chinesa, de 1958 a 1961, descrita ridiculamente pelo governo como “Os três anos de desastres naturais”. Só de fome foram dezenas de milhões de mortos, e isso sem contar aqueles assassinados pelo governo em seus campos de concentração – afinal, dentro da triste mentalidade daqueles que estavam no poder, se estiverem mortos não irão se alimentar, sobrando mais comida para os demais.

Em 1961, o governo permitiu certa importação de alimentos, e alguns camponeses puderam ter suas colheitas privadas e terras particulares, assim como alguns mercados. A repressão econômica arrefeceu um pouco, mas não a política, que perdurou com o totalitarismo para cima de diversos segmentos da sociedade. Isso, entretanto, pelo menos foi suficiente para amenizar (um pouco) o problema da fome. A situação foi melhorando gradualmente até 1976, ano da morte de Mao.

A mudança mais racional economicamente

No mesmo ano de 1976, após a morte de Mao, cresce Deng Xiaoping, nome de um homem que era próximo de Mao nos primeiros momentos da revolução e importante dentro do partido e do país (secretário-geral e vice-presidente, respectivamente). Perdeu o prestígio e passou a ser perseguido por ser mais pragmático (ou menos autoritário, no caso), o que incluiu até prisão domiciliar. Com a morte de Mao, Xiaoping consegue se tornar o novo líder em 1978.

Toda a abordagem sobre as políticas de Mao no presente artigo tem uma explicação: até meados do século passado, em um momento não (tão) distante, a China não era simplesmente um país pobre. Era um país em que dezenas de milhões de pessoas morriam por inanição, sendo milhões todos os anos. O PIB per capta chinês, em 1962, era de US$ 70. Ou seja, cada chinês produziu, em média, 70 dólares naquele ano, o que não dá nem US$ 6 por mês. O Brasil, em 1965, teve um PIB per capta de US$ 258, e a maioria dos países do Oeste Europeu, livres da União Soviética, possuíam no mínimo US$ 1 mil, contra metade dos soviéticos.

Com Deng Xiaoping, aberturas econômicas e diplomáticas abrem um novo caminho para a economia chinesa. O país em que milhões morriam de fome todos os anos estava mudando. Em 1978, o PIB per capta foi de US$ 155 (nominais), contra US$ 1.729 do Brasil, e os países do Oeste Europeu já estavam na casa dos US$ 10 mil. Com a possibilidade de criarem pequenos novos empreendimentos próprios, os chineses passam a experimentar um crescimento quase que exponencial. O detalhe é que essa transição ocorreu da maneira descentralizada, com os municípios tomando as rédeas, e não com o governo central dizendo o que deveria ser feito; ele apenas autorizava. O próprio Deng Xiaoping afirmava que não eram feitos do governo central.

Em 1988, dez anos depois, o PIB per capta chinês mais do que dobrou, indo para US$ 364. O do Brasil estava em US$ 2.270, e muitos países europeus já haviam passado da casa dos US$ 20 mil. Já em 1998, novamente passados dez anos, o PIB per capta chinês mais do que dobrou novamente, indo para US$ 817, enquanto o brasileiro estava em US$ 4.983 e as economias tradicionalmente mais liberais, como a americana, a britânica e a suíça, variando entre US$ 25 mil a US$ 38 mil dólares. Em 2008, o chinês já estava em US$ 3.404, o brasileiro, em US$ 8.721, e os países tradicionalmente liberais com mais de US$ 40 mil dólares, e com a Suíça com mais de US$ 60 mil.

Acumulação de capital e Revolução Industrial

Essas informações ajudam a entender a situação da sociedade no início da Revolução Industrial, parecida com a chinesa em muitos aspectos. O que é de conhecimento geral é que o padrão de vida da população britânica na época era muito ruim, principalmente se comparado com os padrões atuais. A divergência, por sua vez, existe no entendimento da situação: para alguns, é porque faltavam leis que forçassem que os donos das indústrias pagassem maiores salários, ou, na visão ainda mais socialista, porque o capitalismo é um sistema inerentemente explorador e que degrada a condição de vida do trabalhador.

Enxergar a situação assim é começar a “contar a história” pela metade. Primeiramente, a população britânica não desfrutava de um padrão de vida bom antes da Revolução Industrial. Logo, apenas com essa informação e com um pouco de raciocínio lógico já se pode desmistificar que foi a Revolução Industrial e o sistema capitalista que degradaram a vida da população, pois antes dos mesmos as condições sociais eram ainda piores, então, evidente que não podem ser culpados por isso.

Substanciando a argumentação, a expectativa de vida ao nascer no século XVI, antes da Revolução Industrial, girava em torno de 35 anos. Todavia, isso não quer dizer que as pessoas faleciam em torno de seus 35 anos de idade, pois a expectativa de vida ao nascer é uma média. Como havia uma alta mortalidade infantil, a média vai para baixo, pois ao mesmo tempo em que muitas crianças faleciam cedo, adultos passavam dos 60 e alguns até dos 80 anos. Na Grã-Bretanha medieval, a expectativa de vida daqueles que conseguiam chegar aos 21 anos de idade era de 64 anos.

Sobre as crianças, na época, a cada mil crianças nascidas, 140 não completavam nem sequer seu primeiro ano de vida e cerca de 30% das crianças britânicas não completavam nem 15 anos de idade. A maioria foi vítima de febres, gripes, pneumonias, disenteria e varíola, doenças que por vezes atingiam até mesmo nomes importantes das monarquias europeias vigentes.

Também ocorriam acidentes fatais envolvendo o trabalho. Sim, crianças já trabalhavam antes da Revolução Industrial. Geralmente começavam aos 8 anos de idade. Mas isso não acontecia porque “faltavam leis” ou porque os pais eram maldosos. Acontecia porque a produtividade era baixa, então bens e até mesmo alimentos por vezes se tornavam escassos, o que resultava em grandes ondas de fome generalizada ao redor de não só da Europa, mas diversos casos ao redor do globo no decorrer da história, incluindo o caso chinês acima – o detalhe é que no século XX não houve nenhum caso de fome generalizada em tempos de paz nos países que adotam a economia de mercado e que não costumam distorcer muito a mesma; o mesmo, infelizmente, não pode ser dito daqueles que adotaram sistemas econômicos altamente intervencionistas e estatizados. Se mesmo com as crianças ajudando no processo produtivo esses tristes fatos ocorriam, imagine sem elas. Todavia, felizmente, a situação melhorou.

É claro que a situação começa a melhorar quando a propriedade privada e a economia de mercado (e principalmente a de livre mercado) passam a ser utilizadas, com atividades voltadas ao lucro e com salários e preços regulados pela oferta e demanda. Evidente que são melhorias graduais, afinal, a economia de mercado é tão somente um reflexo da sociedade, composta por compradores e vendedores; a economia capitalista responde aos anseios, habilidades e outras características gerais dos indivíduos que a preenchem, como se fosse uma ferramenta pronta para ser usada para diversas situações. Quando, quanto e principalmente como será usada se torna um longo e complexo processo.

O que se vê acontecendo hoje na China é um processo parecido com o ocorrido nos países que lideraram o processo da Revolução Industrial. É claro que o modelo chinês apresenta um governo que provoca sérias distorções em sua economia – o uso de cimento para a construção de diversas instalações em apenas dois anos equivaleu ao uso de um século do mesmo produto pelos Estados Unidos, o ícone do consumismo que aterroriza a esquerda e os ambientalistas. Mas as mudanças que a economia chinesa enfrentou a partir da segunda metade do século XX já servem para desmistificar a alegação de que os salários sobem e/ou precisam subir com canetadas do governo.

Recentemente, os suíços rejeitaram nas urnas com 76% dos votos aquele que seria o maior salário mínimo do mundo, de CHF 22 (francos suíços) por hora, equivalente a R$ 54,58 na época, que totalizariam CHF 4 mil por mês, ou seja, quase R$ 10 mil por mês. A proposta, idealizada pelos sindicatos e por partidos de esquerda, tinha como objetivo fazer com que mais pessoas “tivessem uma vida digna”, distribuição de renda e igualitarismo econômico. De início, por exemplo, seria difícil a mesma rejeição ocorrer no Brasil, tendo em vista que o povo suíço, como demonstrado, entende muito mais de salários, desemprego e economia que o brasileiro: o principal argumento é que tal medida elevaria os custos de produção e desemprego. Ademais, atualmente a Suíça, assim como outros países europeus, não possui um salário mínimo aos moldes existentes no Brasil, por exemplo. Os salários são definidos em negociações entre empregadores e empregados, além de convenções coletivas. E, apesar da retórica de “exploração” da esquerda, nem 10% da população economicamente ativa recebe menos do que o salário proposto. Ou seja, mesmo sem uma política de salário mínimo, praticamente 90% dos trabalhadores já recebiam um salário superior ao proposto, e isso contando com o fato de a Suíça possuir um dos melhores padrões de vida do mundo e uma das mais sólidas economias europeias, diferente de países europeus mais assistencialistas, que, apesar de gastarem mais para a benesse de seu povo, estão um pouco longe de apresentarem os mesmos resultados que os suíços.

A formação dos salários é como a de um preço qualquer, analisando friamente. Claro que são utilizados para o consumo e que alimentam o sistema, mas sua formação é igual à remuneração de outros fatores de produção. Não há nada de mágico e/ou especial que possa fazer com que os salários estejam acima de seu preço de mercado sem causar problemas econômicos, mesmo com todos os apelos emocionais característicos da retórica marxista.

Quando um salário mínimo, que também é um preço, está sobreprecificado, ou seja, acima do seu nível de mercado, surge um problema de desemprego. Isso ocorre porque os custos aumentam, os empregadores ganham um incentivo para utilizar meios alternativos mais baratos do que contratar novos trabalhadores, e aqueles já empregados correm o risco de perderem o emprego em decorrência do aumento dos custos. O movimento natural de mercado seria a redução da demanda e aumento da oferta de trabalhadores, o que diminui os salários novamente, tornando-os atrativos. Todavia, como a nova legislação proíbe salários menores, os salários não cairão e surge um desequilíbrio, na forma de desemprego. Os suíços entendem isso, algo que os keynesianos não, pois “o aumento nos salários aumenta o consumo e revigora todo o sistema econômico…”

Sobre a China, graças ao aumento na produtividade, os aumentos nos salários estão ocorrendo. Ainda estão abaixo do Japão, economia muito mais pró-negócios e também o antigo representante dos produtos baratos oriundos da Ásia. Entretanto, estão aumentando, gradualmente, como a realidade econômica impõe.

Conclusão

Longe de defender o atual arranjo socioeconômico chinês, autoritário e que gera graves distorções. Porém, inegável que a flexibilização ocorrida nas últimas décadas possibilitou que aquele país que possui mais de 1 bilhão de pessoas pudesse galgar novos patamares para o padrão de vida de sua população.

Essa flexibilização demonstrou mais um caso claro de um país que vivia uma situação até mesmo pior do que aqueles que lideraram a Revolução Industrial nos séculos passados e que conseguiu melhorar. Com as mudanças e melhorias econômicas, os salários e o padrão de vida aumentaram, e é importante ressaltar essa ordem. Primeiro, houve mudanças econômicas, já que a economia passou a usar alguns princípios de mercado. Depois, com as melhorias econômicas, e só então, surgem os aumentos salariais. Mudar essa ordem no desenvolvimento econômico é, como no jargão popular, colocar a carroça na frente dos bois.

Infelizmente, o povo brasileiro carece de compreender esse fato. Em greves neste ano de 2014 houve casos em que os grevistas protestavam por reajustes de 30%, no mínimo. Tivesse o faturamento das empresas aumentado em 30%, ainda assim um reajuste de 30% seria algo questionável. Mas se a receita da empresa tem um aumento longe de 30%, qual a justificativa de um aumento dessa magnitude? Ou então o caso da greve dos engenheiros e arquitetos da prefeitura do Rio de Janeiro, em que pediam um aumento no piso salarial que já era de R$ 4.700, valor muito acima daquele que os pagadores de impostos que os sustentam recebem. Interessante essa noção de justiça social. O aumento dos salários por meio da redução dos lucros, dentro do raciocínio de luta de classes, é completamente justificável para os sindicatos. E o aumento dos salários que são pagos por meio dos impostos que os trabalhadores do setor privado pagam, e que muitas vezes recebem menos do que aqueles que ajudam a sustentar, também o são? Definitivamente, o povo brasileiro precisa aprender algumas coisas com o povo suíço.

A arma é civilização

Maj. L Caudill USMC (Ret)

 

Manifestação do Major L. Caudill – Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA – USMC

As pessoas só possuem duas maneiras de lidar umas com as outras: pela razão e pela força. Se você quer que eu faça algo para você, você tem a opção de me convencer via argumentos ou me obrigar a me submeter à sua vontade pela força. Todas as interações humanas recaem em uma dessas duas categorias, sem exceções. Razão ou força, só isso. Em uma sociedade realmente moral e civilizada, as pessoas somente interagem pela persuasão.
A força não tem lugar como método válido de interação social e a única coisa que remove a força da equação é uma arma de fogo (de uso pessoal), por mais paradoxal que isso possa parecer.
Quando eu porto uma arma, você não pode lidar comigo pela Força. Você precisa usar a Razão para tentar me persuadir, porque eu possuo uma maneira de anular suas ameaças ou uso da Força.
A arma de fogo é o único instrumento que coloca em pé de igualdade uma mulher de 50 Kg e um assaltante de 105 Kg; um aposentado de 75 anos e um marginal de 19, e um único indivíduo contra um carro cheio de bêbados com bastões de baseball.
A arma de fogo remove a disparidade de força física, tamanho ou número entre atacantes em potencial e alguém se defendendo.

Há muitas pessoas que consideram a arma de fogo como a causa do desequilíbrio de forças. São essas pessoas que pensam que seríamos mais civilizados se todas as armas de fogo fossem removidas da sociedade, porque uma arma de fogo deixaria o trabalho de um assaltante (armado) mais fácil. Isso, obviamente, somente é verdade se a maioria das vítimas em potencial do assaltante estiver desarmada, seja por opção, seja em virtude de leis – isso não tem validade alguma se a maioria das potenciais vítimas estiver armada.
Quem advoga pelo banimento das armas de fogo opta automaticamente pelo governo do jovem, do forte e dos em maior número, e isso é o exato oposto de uma sociedade civilizada. Um marginal, mesmo armado, só consegue ser bem sucedido em uma sociedade onde o Estado lhe garantiu o monopólio da força.
Há também o argumento de que as armas de fogo transformam em letais confrontos os que de outra maneira apenas resultariam em ferimentos. Esse argumento é falacioso sob diversos aspectos. Sem armas envolvidas, os confrontos são sempre vencidos pelos fisicamente superiores, infligindo ferimentos seríssimos sobre os vencidos.
Quem pensa que os punhos, bastões, porretes e pedras não constituem força letal, estão assistindo muita TV, onde as pessoas são espancadas e sofrem no máximo um pequeno corte no lábio. O fato de que as armas aumentam a letalidade dos confrontos só funciona em favor do defensor mais fraco, não do atacante mais forte. Se ambos estão armados, o campo está nivelado. A arma de fogo é o único instrumento que é igualmente letal nas mãos de um octogenário quanto de um halterofilista.

Elas simplesmente não funcionariam como equalizador de Forças se não fossem igualmente letais e facilmente empregáveis.
Quando eu porto uma arma, eu não o faço porque estou procurando encrenca, mas por que espero ser deixado em paz. A arma na minha cintura significa que eu não posso ser forçado, somente persuadido. Eu não porto arma porque tenho medo, mas porque ela me permite não ter medo. Ela não limita as ações daqueles que iriam interagir comigo pela razão, somente daqueles que pretenderiam fazê-lo pela força. Ela remove a força da equação. E é por isso que portar uma arma é um ato civilizado.
Então, a maior civilização é onde todos os cidadãos estão igualmente armados e só podem ser persuadidos, nunca forçados.