Caudilhismo?

Nenhum termo é usado no contexto político de forma mais errônea que “caudilhismo”. O termo hoje é usado como epíteto para tirania, autocracia, ditadura personalista, mas em sua origem o significado da palavra “caudilho” pouco ou nada tinha a ver com populismo ou repressão estatal.

Chacho Peñaloza
Estátua do caudilho argentino “Chacho” Peñaloza, em La Rioja, Argentina. Foto de Diego Sosa.

O caudilho era um líder militar carismático e proprietário de terras que liderava uma força armada, privada ou provincial, para impor a ordem e garantir a segurança em uma província e em sua propriedade e adjacências, de modo similar ao senhor feudal da era medieval. Frequentemente, coube a ele a manutenção de serviços típicos do Estado como a segurança territorial, o policiamento ou mesmo fazer valer as decisões tomadas por um poder judiciário cujo poder executivo correspondente era fraco. Não raro, era ele o responsável por proteger a população vizinha de ataques de índios, de governos estrangeiros, ou mesmo do próprio governo quando os interesses da capital queriam passar por cima dos locais.

O caudilho era o único recurso ao qual apelar contra um poder centralizado no final da era colonial e início da era dos estados nacionais, e foi o responsável pelo sucesso das campanhas de independência na América Espanhola, bem como o estabelecimento das repúblicas. No cone sul, incluindo o Rio Grande do Sul, também foi uma das principais figuras nas guerras contra o centralismo.

Chamar de caudilhos os fascistas e socialistas, defensores de um Estado totalitário, centralizado e hostil à propriedade – principalmente a rural-, é uma contradição em termos. Não foram caudilhos os reis e vice-reis do Império Espanhol, o foram José Gervasio Artigas, Rafael Uribe Uribe, José Martí, Juan Antonio Lavalleja, Miguel Hidalgo e Simón Bolívar. O caudilho começa a perder seu significado original em meados do século XIX quando a América do Sul passa por uma transição da economia rural para a industrial e o nascente Estado republicano começa a atrair os agrários como grupo de interesse no seio da política partidária. O fenômeno chamado “caudilhismo” surgia, mas nesta época já era um termo mais genérico para qualquer militar atuando na política, sendo ele ou não líder de uma armada provincial, tendo ele ou não posse sobre terras.

No século XX e XXI o termo caudilho será empregado para descrever qualquer líder autocrático do porte de um Francisco Franco ou Hugo Chávez, em uma completa inversão do termo. Se o caudilho era o proprietário de terras que dispunha de sua armada provincial ou privada para a defesa do território e mesmo a aplicação da Justiça quando o Estado falhava em fazê-lo, o tiranete sul-americano dos séculos XX e XXI fará o exato contrário: usará o aparato jurídico e militar de um Estado centralizado para despojar os proprietários de terras e fábricas, para então distribuir o butim entre seus seguidores, usando para isso o desmantelamento das forças políticas, sociais e militares locais.

Comparar Chacho Peñaloza – o caudilho federalista que se opôs ao autoritarismo centralizador de Buenos Aires – a Hugo Chávez, o homem que conseguiu destruir a estrutura produtiva do campo e da indústria em seus país e eliminou os mecanismos locais de livre exercício do poder público demonstra o quanto o termo foi esvaziado de seu significado.

Republicanos e Federalistas

Assim como na América do Norte, na América do Sul os movimentos republicanos tinham divergências com relação a organização política nacional. De um lado estavam os centralistas, do outro os federalistas.

Os centralistas, também chamados unitários ou simplesmente republicanos, eram aqueles que propunham uma República administrada por um governo central. Os federalistas defendiam que cada estado, província ou departamento deveria ter um governo autônomo. Além de debates, esta dualidade muitas vezes levou a guerras na região do Prata e no Sul do Brasil.

O conflito mais conhecido desta natureza, no Brasil, é a Revolução Federalista de 1893-1895 que opôs o Partido Federalista do Rio Grande do Sul ao Partido Republicano Rio-grandense. Uma segunda Revolução Federalista ocorreria em 1923 após uma tentativa federalista de chegar ao poder por meio do voto.

NOTA: Os desinteressados em História podem pular as seções II e IV.

I. Os dois lados do conflito
O Partido Federalista do Rio Grande do Sul, fundado em 1892 por Gaspar da Silveira Martins, defendia um sistema federalista e parlamentar de governo, pretendendo a revisão da Constituição republicana em vigor no estado do Rio Grande do Sul desde 1891. Esta Constituição era presidencialista e inspirada pelo positivismo comtiano de acordo com as idéias do chefe do Partido Republicano Rio-grandense, ninguém menos que Júlio de Castilhos.

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Em função do nome do chefe do Partido Federalista, os federalistas também receberam a alcunha de gasparistas, mas ficaram populares mesmo com o nome de maragatos. Os seguidores do Partido Republicano, por sua vez, seriam chamados de castilhistas ou pica-paus. O termo “chimangos” seria usado no século XX para descrever este grupo, já então sob liderança de Borges de Medeiros.

Assim consolida-se a oposição entre “maragatos”(federalistas) e “chimangos”(unitários), simbolizados respectivamente pelas cores de seus lenços: vermelho e branco. Esta rivalidade histórica, protagonista de duas guerras civis no Rio Grande do Sul, hoje se resume a referências culturais em centros tradicionalistas gaúchos (CTGs) e letras de música gaúcha. A imagem típica do gaúcho, com bombacha larga, chapéu e lenço vermelho, é baseada no estereótipo maragato.

Esta identificação de cores de lenço e bandeira, branca para os unitários e vermelha para os federalistas é a mesma na Argentina: os unitarios são brancos e os federales são vermelhos. No Uruguai, o contrário: os blancos são os federalistas e os colorados (vermelhos) são os unitários.

II. A Primeira Revolução Federalista (1893-1895)
A Revolução Federalista ocorreu no sul do Brasil logo após a Proclamação da República. Com a mudança de governo central, Floriano Peixoto havia assumido a República no lugar de Deodoro da Fonseca e houveram mudanças nos quadros políticos e deposição de todos nos nomes ligados ao ex-presidente. Essa mesma ação foi estendida à esfera estadual, onde os governadores “pró-Deodoro” foram substituídos por representantes simpáticos ao novo governo. No caso do Rio Grande do Sul, o novo governador “pró-Floriano” era Júlio de Castilhos.

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À esquerda: Gaspar Silveira Martins, líder dos federalistas. À direita: Júlio Prates de Castilhos, líder dos republicanos.

Os federalistas se revoltaram contra esta situação. Sua pretensão era mudar a forma de governo republicano, de presidencialista a parlamentar, e garantir mais autonomia para os governos estaduais. Isto não era possível com um republicano positivista como Júlio de Castilhos no poder.

Avanço Federalista
Primeiramente, federalistas concentraram tropas em campos da Carpintaria (Uruguai), próximo à cidade de Bagé, primeira cidade a ser tomada. Também o coronel Gumercindo Saraiva dispunha de tropas nas cercanias da fronteira Brasil-Uruguai. Saraiva era irmão de Aparício Saraiva, caudilho do Partido Nacional (blanco) uruguaio, também de inspiração federalista, o qual lhe apoiou.

Dominando a fronteira, os federalistas exigiram a deposição de Júlio de Castilhos e a realização de um plebiscito para determinar o sistema de governo (presidencialista ou parlamentarista). Os federalistas contavam com algum apoio uruguaio e argentino, especialmente da província de Corrientes, o que lhes permitiu obter armamento através da fronteira, praticar incursões táticas em território estrangeiro afim de fugir de perseguições, bem como refugiar-se nos países vizinhos.

maragatos

Ameaçando a estabilidade do governo rio-grandense e o regime republicano em todo país, o presidente Floriano Peixoto enviou tropas do governo federal em socorro do governo estadual. Estas tropas, chamadas legalistas, foram divididas em três zonas (norte, capital e centro) e foram apoiadas pela polícia estadual do Rio Grande do Sul.

Virada Republicana
A primeira vitória federalista foi em maio de 1893 em Alegrete. Deste conflito participou, ao lado dos republicanos, o senador Pinheiro Machado, que organizou e liderou a divisão norte durante todo o conflito.

As tropas federalistas comandadas por Gumercindo Saraiva continuaram avançando até Dom Pedrito e de lá iniciaram uma série de ataques rápidos contra várias posições republicanas. Em seguida, rumaram para o norte avançando sobre Santa Catarina e chegando ao Paraná, sendo detidas na cidade da Lapa, a sessenta quilômetros de Curitiba. Receberam o apoio das tropas de Custódio de Melo, líder da Revolta da Armada contra Floriano Peixoto, que se uniu aos federalistas e ocupou Desterro (atual Florianópolis), partindo daí para Curitiba ao encontro de Gumercindo Saraiva e suas tropas federalistas. Ocorre aí o Cerco da Lapa, já fevereiro do ano de 1894, ocasião em que morreu o coronel republicano Antônio Ernesto Gomes Carneiro sem entregar suas posições. Esta resistência republicana na Lapa frustrou o avanço dos federalistas até a capital da República, o Rio de Janeiro.

republicanos

Com o avanço detido no Paraná, as tropas federalistas recuam para o Rio Grande do Sul. O líder federalista Gumercindo Saraiva é morto na véspera da Batalha de Carovi por um tiro à traição. As derradeiras oportunidades de apoio aos federalistas esvaíram-se quando o almirante Custódio de Melo não conseguiu tomar o porto de Rio Grande, a 6 de abril de 1894. Os republicanos avançariam até o Rio Grande do Sul derrotando, sob comando de João Francisco Pereira de Souza (vulgo a Hiena do Cati), as tropas federalistas no Combate de Campo Osório.

O fim da guerra civil
O conflito teve fim em 24 de junho de 1895 quando no campo de Osório o federalista Saldanha da Gama lutou até a morte com os últimos quatrocentos homens remanescentes em suas tropas, em uma batalha que durou aproximadamente três horas.

Para evitar outros possíveis conflitos, um acordo de paz foi assinado em 23 agosto de 1895, concedendo anistia a todos os participantes do conflito.

Em termos regionais, a Revolução Federalista dividiu os gaúchos em presidencialistas e parlamentaristas. Para a História do Brasil, fica a Revolução entre ideários distintos que tentou implementar o parlamentarismo no Brasil no início do período republicano.

III. Vitória armada republicana, reação federalista nas urnas
O positivismo republicano continuou em vigência, dada a derrota federalista e a aliança entre o governo central da República Velha, o Exército (fortemente influenciado pelo positivismo) e o governo regional de Júlio de Castilhos, que permaneceu no poder até 1898 e foi sucedido por outro republicano, Borges de Medeiros. Este permaneceu no governo até 1908 e governou novamente de 1913 a 1928.

É neste segundo governo borgista (1913-1928) que explode a Revolução de 1923, novamente opondo republicanos a federalistas. Desta vez, os federalistas conseguem uma ampla aliança com diversos setores da sociedade e lançam um candidato à oposição: Joaquim Francisco de Assis Brasil. A divisão entre borgistas e assisistas espelhava a velha rivalidade entre pica-paus (agora chimangos) e maragatos, ou seja, republicanos e federalistas.

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À esquerda, Borges de Medeiros, o presidente republicano em atuação no RS. À direita, Francisco de Assis Brasil, candidato da oposição federalista.

A campanha eleitoral se dá sob clima de repressão e violência. Os opositores são presos, espancados e até mortos, seus locais de reunião são fechados e depredados pela polícia. Quando se anuncia a previsível vitória fraudulenta de Borges de Medeiros, a revolta é geral. A disputa nas urnas transforma-se em conflito armado.

IV. A Segunda Revolução Federalista ou Revolução de 1923
Os combates iniciaram ao final de janeiro. As cidades de Passo Fundo e Palmeira das Missões foram atacadas pelos maragatos, mas encontraram forte resistência.

A expectativa de Assis Brasil e seus aliados era a de que o Presidente da República Arthur Bernardes decretasse intervenção federal no Rio Grande do Sul. Mas Borges se aproximou de Bernardes e frustrou as expectativas de seus opositores.

A desvantagem dos maragatos era clara: não estavam devidamente organizados para enfrentar as forças governistas, não tinham objetivos militares bem definidos e a esperada intervenção federal não viria. A continuidade da luta dependeu de ações isoladas de caudilhos como Honório Lemes e José Antônio Matos Neto, o “Zeca Netto”. Suas operações militares ficaram restritas a regiões distantes da capital do estado (Porto Alegre) e não conseguiram causar dano à superioridade dos borgistas. Para Assis Brasil e seus aliados mais lúcidos ficou claro que não havia possibilidade de vitória militar, e por isso manifestaram disposição de negociar.

Zeca Netto, oposto a qualquer acordo com Borges, imaginou que se atacasse e tomasse uma cidade importante, poderia intimidar os borgistas. Em 29 de outubro atacou Pelotas, a maior cidade do interior gaúcho na época, e a manteve sob seu controle. Porém, este controle durou apenas seis horas: as forças governistas conseguiram se rearticular e receber reforços. Na iminência de ser atacado por forças superiores, o velho caudilho de 72 anos de idade retirou suas tropas.

Depois deste episódio, os maragatos não tinham condições de seguir lutando e submeteram-se às negociações comandadas pelo governo federal. Em dezembro de 1923, pacificou-se a revolução no Pacto de Pedras Altas. Borges de Medeiros permaneceu no poder até o final do mandato em 1928. O federalismo estava mais uma vez derrotado frente ao centralismo republicano.

V. Federalismo hoje
Ao longo da história, o poder no Brasil oscilou entre formas mais centralizadas e formas mais descentralizadas, sem jamais atingir um nível de autonomia regional minimamente aceitável em comparação com outras Repúblicas Federativas. Houveram períodos críticos de centralização como durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e o Regime Militar. Ainda hoje, quem quer que ouse defender mais autonomia para os governos estaduais corre o risco de ser acusado de separatista.

O federalismo tem muito o que fazer pelo Brasil e pelos brasileiros hoje. Ele pode:

  • Eliminar o excesso de transferências de recursos entre União, Estados Federados e Municípios, reduzindo os custos produzidos pela burocracia e pela corrupção, incentivando a administração responsável e local dos recursos de cada região.
  • Aumentar a pluralidade e participatividade da política através do pluripartidarismo livre, que permite a prática político-associativa em qualquer âmbito territorial da Federação, não só o nacional como ocorre hoje.
  • Estimular o processo democrático de consulta popular, de referendo e plebiscito para questões de interesse estadual ou municipal, incluindo decisões sobre cargos municipais e estaduais e sua remuneração, por exemplo.
  • Vedação da tributação ou restrições sobre comércio interestadual, fomentando a cooperação entre as UFs e gerando desenvolvimento e empregos.
  • Redução da intervenção do Governo da União em assuntos que interessam exclusivamente o Governo do Estado ou do Município, permitindo que ele se foque em suas atribuições legítimas.
  • Dar ao governo estadual o poder de legislar sobre matérias de direito civil, penal, tributário, previdenciário e trabalhista, levando em consideração as necessidades, os recursos e o interesse da população local.

O Brasil é um ambiente inóspito para quem defende idéias federalistas, seja no Sul, no Sudeste ou no Nordeste. No entanto, não devemos desanimar: toda idéia, por melhor que seja, encontra resistência. Especialmente se afronta um poder onímodo e onipresente como o do governo federal sediado em Brasília (não sem razão, no meio do país e bem longe da população). Uma federação deve ser uma organização baseada no respeito mútuo e na cooperação, não no clientelismo e na subordinação. São os princípios humanos e universais do federalismo que devem ser valorizados e difundidos, não a oposição ao centralismo baseada em um bairrismo caricato.

VI. Federalismo sempre
É muito diferente do ufanismo tradicionalista a defesa da autonomia regional. É um erro bem típico daqueles que advogam maior autonomia para uma ou outra região ou estado atrelar esta luta a um particularismo cultural destas regiões. Neste caso, a confusão com o separatismo e o nacionalismo é realmente difícil de evitar.

Também os baianos e cariocas deveriam desfilar por aí com lenços vermelhos, ainda que metaforicamente. Também eles deveriam ser maragatos. Não porque devam assimilar nossa cultura e tradição, mas porque deveriam interessar-se pela sua autonomia tanto quanto nós um dia o fizemos. Ou é isso ou submeter-se ao chimanguismo, ao centralismo, ao unitarismo: reina a pluralidade cultural em liberdade no âmbito privado e uma servidão monolítica e uniforme no âmbito público.


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