A Alemanha comunista vendeu pacientes para experimentos

Por Enrique Müller. Tradução de Renan Felipe dos Santos. Matéria publicada originalmente no El País. Para ler o artigo original, em espanhol, clique aqui.

O presidente da RDA em 1986, Erich Honecker.

Um documentário revela que a antiga RDA aprovou nos anos oitenta a venda de enfermos, por 2.200 euros cada um, a companhias farmacêuticas ocidentais para experimentos com medicamentos

O chamado paraíso dos trabalhadores alemães, a agora desaparecida República Democrática Alemã (1949-1990), sofria de uma crônica e perigosa falta de divisas ocidentais, uma enfermidade que se refletia, por exemplo, na pobreza dos hospitais que careciam de instrumentos médicos modernos.

Para sanar a falta dos cobiçados marcos da Alemanha ocidental (RFA), o regime não exitou em vender a Bonn vários milhares de prisioneiros, uma transação que se realizou no mais alto nível nos dois países. O último Governo comunista da RDA, dirigido por Erich Honecker, também tornou possível que a sueca IKEA construísse móveis nos cárceres da RDA, um pecado que foi admito recentemente pelo gigante sueco.

Segundo os jornalistas Stefan Hoge e Carsten Opizt, autores do documentário Test und Tote (Teste e morte) exibido na noite de segunda-feira pela primeira cadeia de televisão pública, ARD, o regime de Honecker também alentou a sua elite médica para traficarem seres humanos, que eram oferecidos como cobaias humanas a empresas farmacêuticas da RFA e da Suíça. Desde 1983, várias centenas de doentes crônicos foram utilizados por empresas como Sandoz e Hoechst para testar fármacos que ainda não haviam recebido uma autorização para sua comercialização.

Honecker, depois de escutar as queixas dos médicos de seu país sobre as carências nos centros médicos e o descontentamento da população, ordenou aos membros do Comitê Central que criassem um programa para possibilitar a captação de divisas para modernizar os centros médicos, segundo os testemunhos e documentos recolhidos neste trabalho jornalístico.

Segundo o historiador da universidade de Marburg, Christoph Friedrich, no outono de 1983 um grupo de médicos de clínicas escolhidas receberam a autorização para utilizar seus pacientes para realizar testes com medicamentos não autorizados. As clínicas ofereciam às vítimas a soma de 3.800 marcos alemães de então (2.184 euros atuais).

Uma das vítimas foi Gerhard Lehrer, que estava hospitalizado em Dresden por causa de um ataque do coração. Depois de receber alta, o estado de saúde de Lehrer piorou e seu médico pessoal exigiu que ele devolvesse o medicamento que havia recebido. O paciente negou. Lehrer morreu um ano depois, mas sua viúva conservou a caixinha vermelha que continha as cápsulas de cores branca e vermelha que lhe haviam administrado.

Há dois anos, uma cadeia regional de televisão informou pela primeira vez sobre o comércio de seres humanos, mas sem dar muitos detalhes. A viúva contactou a emissora e entregou as cápsulas, que foram analisadas por um laboratório da universidade de Leipzig. O resultado alertou a comunidade científica: as cápsulas não continham um fármaco apropriado para combater as enfermidades do coração, mas um placebo.

Um número de série na caixinha vermelha serviu de pista para os dois jornalistas que não tardaram em descobrir nos arquivos do Ministério da Saúde da ex-RDA pastas que continham informação sobre o teste com medicamentos. Gerhard Lehrer, por exemplo, havia recebido o fármaco Ramipril, utilizado para baixar a pressão sanguínea e fabricado por Hoechst.

O negócio entre as clínicas da ex-RDA e os consórcios farmacêuticos esteve regulamentado através do Ministério do Comércio da Alemanha comunista e segundo a documentação obtida pelos dois autores do documentário, foi florescente. “Cremos que umas 1.500 pessoas foram utilizadas por consórcios ocidentais para testar seus novos fármacos”, declarou a EL PAÍS Stefan Hoge, um dos dois autores do documentário. “Os consórcios sempre necessitaram seres humanos para testar seus fármacos e isto a elite média da RDA sabia muito bem”, adicionou.

“Um dos centros médicos que mais colaborou com esta prática foi o Charité de Berlin”, disse Hoge, ao referir-se a uma das grandes instituições médicas que existiam na ex-RDA e que também sofria pela escassez de divisas que imperava no país da foice e do martelo. “De fato, todos os centros médicos estavam interessados em oferecer pacientes”.

Um “paciente” foi Hubert Bruchmüller, em quem descobriram uma insuficiência cardíaca que pôs fim a suas aspirações de virar atleta. O enfermo recebeu o medicamento Spirapril de Sandoz: Durante sua permanência em um hospital em Lostau, uma localidade próxima a Magdeburgo, 6 dos 17 afetados que foram tratados morreram, um balanço que convenceu a Sandoz a suspender os testes. Bruchmüller sobreviveu graças à queda do Muro, que obrigou as autoridades sanitárias da ex-RDA a por fim ao programa criado em 1983.

Os autores do documentário conseguiram localizar o médico Johannes Schweizer, que receitou a Gerhard Lehrer as cápsulas que continham Ramipril e que atualmente trabalha como catedrático na Universidade de Chemnitz. “É certo, tratamos a estes pacientes e sempre se tratava de vida ou morte”, confessou o médico.

Após a emissão do documentário, Hoge assinalou que já está recebendo comentários de gente anônima que crê ter sido utilizada pelo regime. “A imprensa está reagindo lenta, mas positivamente”, disse o autor.

Autor: Renan Felipe dos Santos

Autor e tradutor.

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